Escola de aprendizes marinheiros
Quem vê o bairro de Jacarecanga dominado pelo comércio e pelo descaso talvez nem imagine a opulência que essa região representava para Fortaleza no começo do século 20. Passar pelo cruzamento da avenida Francisco Sá com a Filomeno Gomes é como colocar um pé no passado e não desgrudar o outro do presente. O paralelo é inevitável: as grandes casas antigas disputam o espaço com os prédios e vários estabelecimentos comerciais, como lojas de roupas, lanchonetes e mercadinhos.
Corpo de bombeiros
No passado, Jacarecanga foi o refúgio das elites fortalezenses à conturbação do centro da cidade. Nos primeiros anos do século 20, o Centro foi transformado de bairro residencial para bairro misto, com cada vez mais comércios e serviços. Essa mudança começou a incomodar os burgueses da cidade. Como alternativa, surge Jacarecanga, um bairro próximo à praia, com uma boa brisa, um ótimo local para construir sítios e casas monumentais.
Rapidamente, Barões, Ministros, grandes fazendeiros e aristocratas da cidade começaram a se deslocar para Jacarecanga, e o bairro foi se urbanizando. Mas esse status de “opulência” só se estendeu até a década de 1930. O motivo? A chegada do operariado da cidade. Indústrias, comércios e cortiços começaram a ser construídos na região, e, novamente, as elites se deslocam – dessa vez, para os bairros Benfica, Praia de Iracema e Aldeota. Hoje, Jacarecanga se divide em área industrial, residencial e de comércio, exibindo ainda algumas edificações que marcaram uma época.
Alguém que passa um olhar despercebido talvez não veja esse contraste entre passado e presente. Mas é importante ressaltar: ele existe. O colégio Liceu do Ceará, na praça Gustavo Barroso, é um dos exemplos mais fortes. Deteriorado por uma erosão de vandalismo e descaso, a escola está acabada – e não apenas do ponto de vista infra-estrutural. Um colégio que, antigamente, era conhecido pela sua excelência e responsabilidade, hoje não representa mais do que uma escola pública no meio de tantas outras. “Muitos alunos saíam do colégio direto para as universidades, sem precisar fazer cursinho para entrar”, diz Raimundo Alves Pinheiro, que foi estudante do Liceu e mora no bairro desde 1984.
Raimundo tem hoje 64 anos e demonstrou conhecer muito da história de Jacarecanga. Foi ele que apresentou Dona Lêda, outra moradora do bairro. Ela é filha do ex-prefeito Manuel Cordeiro Neto, que governou Fortaleza entre os anos de 1959 e 1963 e construiu uma casa na avenida Filomeno Gomes. Aos 82 anos de idade, Dona Lêda ainda lembra a época em que pegava um bonde nessa mesma via para ir ao colégio. Naquele tempo, as mulheres estudavam em colégio de freiras, e os homens – os que podiam – estudavam no Liceu.
Nem mesmo Dona Lêda, que mora na região há mais de 50 anos, sabia que o bairro, antes conhecido como Fernandes Vieira, completou 164 anos. A data passou em branco, assim como tem passado os cuidados com o patrimônio histórico.
No bairro, existem quatro tipos de casarões: aqueles que foram fechados, outros abandonados, os que foram transformados em repartições públicas e os que continuam sob os cuidados dos próprios moradores – alguns cuidando bem, outros nem tanto. Na verdade, para completar o elenco, ainda existiria um quinto tipo: as grandes casas que hoje nem existem mais, que tiveram suas estruturas originais completamente modificadas para dar lugar a novos empreendimentos.
As casas fechadas são tão fechadas que se torna quase impossível localizar seus donos. Apesar de um morador aqui e outro acolá dizer que conhece o dono de tal casa, não se pode saber ao certo quem seja esse “suspeito”. Para os imóveis abandonados, a situação piora. Sem donos nem cuidados, eles são transformados em berço de vandalismo, sofrendo pichações, em pura degradação.
Entretanto, alguns moradores só não cuidam mais de suas casas porque não podem. Dona Maria Luíza mora sozinha com o seu cachorro em um dos casarões mais famosos do bairro – conhecido como “Casa da Normandia”.
A residência, que também fica na avenida Filomeno Gomes, pertenceu ao ex-ministro Raimundo Brasil Pinheiro de Melo, pai de Maria Luiza. Segundo ela, o ex-ministro tirou o modelo de uma revista alemã e começou comandar a construção em 1920. A casa só foi totalmente terminada em 1928, quando a família finalmente se mudou. Alguns detalhes foram perdidos com o tempo: o muro foi alteado, o mastro no cume da casa foi retirado, o quintal sofreu reforma para abrigar um Buffet e parte da construção original do hall da casa foi destruída.
Seja pela falta de cuidados, seja pela incapacidade de cuidar, muitas dessas grandes casas estão sendo vendidas para o governo, que utiliza os espaços para instalar repartições púbicas. De certa forma, isso acaba se transformando em uma boa alternativa para o descaso. Em Jacarecanga, existe uma grande casa que espelha bem essa alternativa: a Escola de Artes e Ofícios Thomaz Pompeu Sobrinho.
Outro casarão que felizmente foi reformado foi um que fica na Guilherme Rocha
Ela não tinha teto, não tinha nada. Mas, diferente da casa cantada um dia por Toquinho e Vinícius de Moraes, a graça dela era outra. Ela sobreviveu, na contramão da Fortaleza que se vai para abrigar espigões - sejam de domicílios, sejam de comércios. Foi necessário um investimento de R$ 92,5 mil para conservar-lhe a graça e devolver-lhe vida de novo. Há cerca de três meses, quem mora ou transita pelo bairro Jacarecanga ganhou de presente a preservação de um pedaço da memória da Cidade. O local agora é sede do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comdica).
Também como a casa de Toquinho e Vinícius, o imóvel recém-recuperado do Jacarecanga foi feito "com muito esmero". Mas, desta vez, nada de "Rua dos Bobos". O número é 1.469, na rua Guilherme Rocha, esquina com a rua Conselheiro Estelita. A casa de dois pavimentos, em estilo colonial, já teve vários proprietários. Por lá, já viveram membros da família Divino de Carvalho, da Asfor, da Quezado. Foi até da dona Glorinha Pestana, a parteira oficial das imediações. Abandonado, o belo imóvel amargou vários anos ruins. Hospedou a pobreza, a fome, a marginalidade. A recuperação do casarão foi promovida pela Prefeitura, através da Secretaria Executiva Regional II e sob o acompanhamento da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Infraestrutura (Seinf).
O órgão informa uma idade aparente de 48 anos para a casa, mas vizinhos antigos dão conta: ela surgiu na década de 30. Desapropriado em março de 2004, a reforma da gestão anterior, ainda na era Juraci Magalhães, foi paralisada durante vários anos, quando virou refúgio para moradores de rua. No vai-e-vem de moradores, pelo menos 20 famílias já chegaram a se instalar por ali. Quando as obras foram retomadas em julho do ano passado, o prédio se encontrava totalmente depredado e sua estrutura exposta às variações climáticas. As pichações eram o "enfeite" do que restou da casa.
Teresa Diana Campelo Divino de Carvalho hoje tem 70 anos e é só alegria. É testemunha de uma época em que Fortaleza tinha outras feições, assim como o endereço na rua Guilherme Rocha. A aposentada rememora. A casa que abriga hoje o Comdica foi um presente de casamento para Laís de Azevedo Divino de Carvalho. Doação do pai, João Hipólito de Azevedo, conhecido diretor da antiga Escola Normal. Dona Teresa casou com o filho de Laís, Márcio, e ganhou um pedacinho do terreno, onde até hoje mora.
A reforma e revitalização da casa que hoje abriga a sede do Comdica ressuscita o diário das recordações de dona Teresa. Nele, um passeio pela memória do bairro. "No antigo Jacarecanga todos eram muito amigos, botavam as cadeiras na calçada, sentavam-se. As crianças ficavam por ali. Não tinha essa violência de hoje. Dá uma pena tanta casa bonita por aqui. A Laís (de Azevedo) tinha muito amor pela casa dela. Nosso pessoal (em Fortaleza) costuma não ter memória".
Fonte: Jornal O Povo/Terra dos casarões e pesquisa de internet