O Bairro mantém sua principal referência histórica, que é a de ter servido como base militar norte-americana.
Há um bucolismo e uma atmosfera telúrica que mais lembram um lugarejo do Interior. A marca forte da terra, que não sucumbiu aos prédios e edificações gigantes, faz com que o Pici tenha seus ares de bairro com raízes do povo do campo. Para o bem ou para o mau, também resistiu ao tempo a contribuição que o bairro deu para o belicismo, durante a II Grande Guerra.
Uma das marcas maiores é a sua história. Exemplos são os resquícios de um passado no qual os extensos e numerosos sítios instalados naquele lugar dividiram espaço com algo que, até então, era alheio à vida pacata de seus moradores. Trata-se do tempo em que, em pleno confronto bélico da II Guerra Mundial, os norte-americanos construíram uma base militar, onde partiam e retornavam os aviões de bombardeios.
Da antiga base, há ainda vestígios, como a pista de asfalto, por onde decolavam e aterrissavam as aeronaves. Também ficaram os paióis, onde camuflavam as armas e hoje moram famílias.
Resistência
Esse é o caso da de Fernando Ferreira da Silva, que mora em uma dessas casamatas há 65 anos. A edificação foi construída como uma espécie de abrigo subterrâneo, de grossas paredes, para a instalação de bombas e equipamentos utilizados pelos militares.
Casamata resistiu ao tempo e hoje abriga a família de Fernando Ferreira da Silva. O lugar era depósito de bombas
O "bunker" (outro nome para casamata) da atualidade já não é mais subterrâneo. As grossas paredes foram modificadas pelos próprios moradores, que procuraram outras passagens de luz e ventilação.
Mesmo assim, o lugar ainda permanece quente e abafado, levando à imaginação como era quando conseguiam vento e luminosidade por uma espécie de "respiradouro", instalado no topo do abrigo.
Fernando Pereira lembra do tempo em que o local acabara de ser abandonado pelos norte-americanos. Mesmo assim, a história da passagem dos militares é contada oralmente pelos moradores mais antigos e repassadas aos jovens.
Rua Tancredo Neves
Moradia
Assim, fala-se de que as casamatas pareciam pequenos montes nos quais uma lona verde não apenas fazia a cobertura da parte exposta como camuflava com a vegetação extensa daquela época. Hoje, Fernando quase não consegue falar por problemas de saúde. No entanto, esforça-se para dizer que o "bunker" foi fundamental para viver com sua mulher, Maria do Carmo Vieira, e criar os filhos.
Não obstante todas as lembradas do passado da guerra, a atualidade do Pici é vivida por pessoas antigas e novas, que foram povoando o lugar, onde se formaram bolsões de áreas de riscos, como as favelas do Papoco, Feijão e Riacho Doce.
Nascida e criada no Pici, Risalba Ximenes demonstra perplexidade com o crescimento do bairro e de seus problemas sociais. As comunidades, ressalta, passaram a conviver com a violência e a disputa de gangues, algo impensável há algumas décadas.
Também reclama da carência de postos de saúde e das ruas mal cuidadas. A queixa maior é por conta da pressão que se vem fazendo com os moradores de áreas onde foi instalada a base norte-americana, e hoje é um campus da Universidade Federal do Ceará (UFC), para que deixem aquela área.
Cruzamento da Entrada da Lua com rua Planalto do Pici
De sítios à periferia
Perfil tradicional é preservado
No passado, o bairro Pici era recanto próprio para sítios e distante da área central (e por isso escolhido como base militar na II Guerra). Hoje, é um bairro da periferia, alvo da expansão demográfica e cercado por bolsões de pobreza.
Cruzamento da rua Chaval com rua Quatro de Dezembro. Vemos um poço no meio da rua.
O memorialista Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, conta que o lugar era próprio para o repouso e o desfrute da natureza exuberante.
Atualmente, ele avalia que o empobrecimento do bairro foi gerado pelo seu isolamento, ao contrário de outras áreas semelhantes, como a Maraponga, que não se viu cercada de várias áreas de riscos.
Observa que, ao mesmo tempo em que o lugar atraía famílias de baixa renda, a oferta dos serviços públicos se tornou precária diante dessa demanda.
Sede do Leão na Avenida Senador Fernandes Távora. Foto WLuiz
Contudo, a pujança do lugar é verificada pela forma como suas tradições foram preservadas. Para os torcedores apaixonados pelo Fortaleza, a sede do time, onde está localizado o Estádio Alcides Santos, é como um verdadeiro templo, tanto que a equipe é sempre associada ao "Leão do Pici".
Praça Ney Rebouças
Quem conhece bem a história de amor e preservação da cultura local é o comerciante João Ferreira, conhecido como João da Praça, por ter plantado árvores e atuar como "zelador" da Praça Ney Rebouças, em frente à sede do Fortaleza.
Praça Ney Rebouças
Vandalismo
João da Praça lamenta muito o avançado estado de degradação da praça devido a atos de vandalismo. Há tempos foi retirada, daquele logradouro, uma placa de bronze alusiva ao desportista que dá nome à praça. Porém salienta que tem sido forte a preservação do perfil tradicional e religioso, como a devoção a São José Operário, significativa para aquele espaço que se tornou proletário.
Hoje, o Pici perdeu muitas de suas áreas para um bairro vizinho, o Jóquei Clube.
Pici e Cocorote: as Bases Americanas no Ceará por Igor Dutra
(*) Base do Pici
O levantamento da área para a construção na cidade de Fortaleza da pista do Pici começou em julho de 1941. As obras foram confiadas à empresa cearense Campelo e Gentil, dirigida pelos engenheiros Armando Campelo e José Gentil Neto. O projeto do Pici previa uma pista de 500 pés de extensão para permitir o trânsito de aviões de porte médio, além de prestar apoio aos aviões que faziam o patrulhamento do litoral nordestino.
O Brasil só entrou na guerra em agosto de 1942. Mesmo assim, em 11 de dezembro de 1941, a Base de Natal recebia dos Estados Unidos o Esquadrão VP-52 da Força Aeronaval Americana. O esquadrão era composto por seis aviões Catalinas (PBY-5) e tinham como finalidade cumprirem missões de guerra.
Segundo historiadores, a pista do Pici foi inaugurada prematuramente (com apenas 75% de extensão construída) em fevereiro de 1942, por ocasião de um pouso de um avião americano B-17 que se encontrava perdido de sua rota original. A permanência da aeronave em Fortaleza foi de apenas 30 minutos.
Dados da época informam que o sobrevoo da aeronave causou certo pânico na população local em função das notícias que chegavam da Europa. O temor de então era causado pela possível participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.
A conclusão das pistas do Pici data de março de 1942. Análises técnicas e meteorológicas, levantadas tanto por especialistas brasileiros como americanos, preconizavam que houve precipitação no posicionamento da pista.
Pista do Pici, na antiga Base aérea de Fortaleza, que servia para o automobilismo antes da construção do Autódromo Virgílio Távora - Acervo Nelson Bezerra
Pista do Pici, na antiga Base aérea de Fortaleza, que servia para o automobilismo antes da construção do Autódromo Virgílio Távora - Acervo Nelson Bezerra
As limitadas dimensões da pista do Pici, e o avanço das forças alemãs na Europa e na áfrica, fizeram com que os americanos resolvessem procurar outro local para a construção de uma nova pista em Fortaleza. A ideia era permitir pousos e decolagens de grandes aviões de bombardeio. Essa estratégia visava também desafogar a base de Parnamirim, no Rio Grande do Norte, que já havia entrado em processo de saturação face ao grande número de vôos destinados para o local.
O passo seguinte foi a escolha de uma nova área. A reportagem da Revista Aeronáutica, edição de n° 15, de 1985, escrita pelo jornalista José Pinto, relata que o Ten. Coronel José Sampaio de Macedo foi o responsável pela escolha do novo local para construção da 2ª Base Americana em Fortaleza. A área escolhida foi o bairro “Cocorote”.
Esse novo local permitiu o pouso dos aviões brasileiros estacionados no alto da balança. Na nova base foi construída ainda uma ampla pista de taxiamento, chamada de “Barata Ribeiro”, que facilitou a interligação com a pista do Alto da Balança.
Em julho de 1943 começaram os trabalhos no Cocorote, enquanto a Base do Pici começava a ser ampliada para atender a marinha americana. No final de 1943 a Base passou a sediar o esquadrão VP-130, com 12 aviões PV-1 Ventura, e o Blimp K84, do esquadrão P-41, aeronaves originadas da Base de São Luis do Maranhão.
Ainda segundo o jornalista José Pinto, a proximidade do Cocorote com a Base do Pici, também chamada de Base Brasileira, fez com que a nova pista adjacente passasse a ser chamada de “adjacent field”, ou pela denominação oficial, “1155th Army Air Force Base Unit Fortaleza”.
(**)Base do Cocorote
Torre de controle do antigo terminal do Pinto Martins
A movimentação da Base Americana de Fortaleza não teve o mesmo desempenho da Base de Parnamirim (RN). As estatísticas da FAB, além das informações obtidas junto à Agência de Pesquisas Históricas da Força Aérea Americana, sediada no estado do Alabama (USA), confirmaram que cerca de 1.778 travessias partiram de Fortaleza entre 10 de dezembro de 1943 (data da inauguração da pista do Cocorote) e 14 de maio de 1944, data da última travessia.
A Base do Cocorote, local onde está construído hoje o Aeroporto Internacional Pinto Martins, praticamente só era separada da Base do Pici pela Avenida João Pessoa (denominada na época pela população de ‘Concreto’) e um trecho da linha férrea. Da Base do Pici para o Cocorote existia uma longa avenida, atualmente Carneiro de Mendonça. O acesso à pista do Cocorote pela Avenida João Pessoa era feito pelo Bar Avião, ainda existente na Avenida João Pessoa. Para dar suporte às obras das duas pistas (Pici e Cocorote) os americanos construíram uma fábrica de asfalto no Bairro Itaoca.
A Base do Cocorote foi considerada como superior no item ‘segurança de vôo’ em relação à Base de Parnamirim. A partir do dia 15 de maio de 1944, Fortaleza passou a receber somente aviões de linha e eventuais aparelhos em emergência.
Pátio Interno e torre Antiga da Base Aérea de Fortaleza - (Adjacento field - 1944) -Arquivo Morais Vianna
Fonte de consulta pelos autores (Ivonildo Lavour e Augusto Oliveira) do livro “A História da Aviação no Ceará”, a reportagem “Tempos de Guerra: côco route ou cocó rout”, de autoria do jornalista e pesquisador de aviação José Pinto, publicada na edição, n° 15 da revista “Aeronáutica”, chega ao final do texto com uma interrogação: Qual o destino do pequeno povoado conhecido como “Pirocaia” cujo nome é o código de chamada usado pelos americanos nas transmissões de rádio, realizadas nas operações da base americana localizada no Cocorote, intituladas pelos americanos de “Adjacent Field”? Respondemos: Trata-se do Bairro do Montese, denominação conquistada em 1951, quando lideranças comunitárias resolveram homenagear os ex-Combatentes cearenses, heróis da Segunda Guerra que, na Itália, venceram os inimigos e libertaram a cidade de Montese, até então em poder das tropas Alemãs.