Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Poço da Draga
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sexta-feira, 10 de maio de 2019

O Centenário Poço da Draga - Parte II

Poço da Draga na década 70. Site Oficial Poço da Draga.
O caminho pelo traçado das ruas do Poço da Draga revela mudanças paisagísticas e de opiniões das pessoas em relação ao passado vivido por alguns na localidade. Desde a fundação estrutural de residências mais amplas, como sobrados elevados, até o calçamento de ruas em pequenas pedras se percebe, a partir do relato dos moradores mais antigos, como muito se transformou atualmente na paisagem daquele espaço. Nos depoimentos das pessoas mais jovens também se denota como as preocupações com o Poço da Draga mudaram no decorrer do tempo.
No âmbito discursivo, atualmente é impossível conversar com as pessoas do Poço da Draga sem que elas falem sobre o Acquário do Ceará. De forma explícita ou indiretamente, o assunto sobre a instalação do empreendimento é recorrente, principalmente a preocupação com a possível remoção das moradias.
Poço da Draga na década 1970. No registro, vemos Nicolau macaqueiro. Site Oficial Poço da Draga.
Poço da Draga na década 1970. Macaquinhos de seu Nicolau macaqueiro fazendo a alegria da garotada.
 Site oficial poço da draga
Muitos acham que o Acquário do Ceará será “lindo demais para deixar esse Poço da Draga feio permanecer aqui”, relata Bianca (Moradora do Poço da Draga).
É impossível não inferir a todo o momento a questão de uma possível remoção dos moradores do Poço da Draga devido à implantação do Acquário do Ceará. A inquietação sobre a permanência em suas moradias é constante.

Obras do Acquário - O Povo 2019 
Bianca, já citada, é vendedora e sempre esteve engajada na manutenção das moradias do Poço da Draga diante da tentativa de remoção por conta de obras na região. Contudo, ela não é otimista na permanência das residências atualmente. Em vez de acreditar em possíveis transformações nas ruas do local com a pavimentação e saneamento, ela entende que “é mais fácil para o governo tirar o pessoal na marra”. Segundo ela, a beleza do Acquário, para os governantes, impede a convivência com a “favela suja” ao lado, atrapalhando a visão dos turistas.
Poço da Draga na década 70. Escola Comandante Fernando Cavalcanti, que era supervisionada pelas freiras conhecidas como “irmãzinhas”. Site Oficial Poço da Draga.
Poço da Draga na década 70. Escola Comandante Fernando Cavalcanti. Funcionando no antigo Pavilhão Atlântico.
Site Oficial Poço da Draga.
É certo que o percurso pelas vias do Poço da Draga revela incômodos em relação à condição de vida das pessoas diante de moradias precárias. Principalmente devido à falta de saneamento básico nas ruas, a higiene coletiva parece ser afetada com a ausência de tubulações próprias para o fluxo de dejetos. Diante das promessas não cumpridas dos governantes em efetivar essas instalações de esgoto, muitos moradores do Poço da Draga percebem descaso das autoridades que administram a cidade. Bianca corrobora dessa premissa. O raciocínio dela é que “se não colocam nem os canos é porque querem tirar a gente daqui”.
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps.
Rua Viaduto Moreira da Rocha hoje. Google Maps.
Bianca mora em uma das duas principais vias do Poço da Draga, a rua Viaduto Moreira da Rocha. A outra via importante do local é a Travessa Cidal, que é de menor tamanho e transversal à anterior. Conforme ressaltado, em ambas as vias não há asfaltamento das ruas e nem saneamento básico. Há uma pavimentação incipiente, finalizada apenas parcialmente, por pequenas pedras. No Poço da Draga ainda se faz presente uma série de pequenas vielas, sem denominação oficial, que se inserem em direção ao mangue localizado entre as ruas principais e o estaleiro pertencente à Indústria Naval do Ceará (INACE). Os esgotos das residências acumulados em pequenas encanações improvisadas caminham principalmente por essas vielas, onde muitas pessoas trafegam.

Travessa Cidal hoje. Google Maps.
Travessa Cidal hoje. Google Maps.
Travessa Cidal hoje, Google Maps
Há, aqui, uma divisão interna do Poço da Draga percebida espacialmente que se reflete em opiniões entre os moradores mais antigos em relação aos mais recentes. Nas duas vias principais, embora não saneadas e sem esgotamento tratado, se localizam as residências mais antigas. Nas vielas que dão acesso ao mangue se localizam ocupações mais recentes. Os moradores mais antigos chamam essa região próxima ao mangue onde os novos ocupantes se agregaram dentro do Poço da Draga de “Pocinho”. 
Conversando com moradores mais antigos é possível perceber algumas queixas deles para com as pessoas que moram na área do Pocinho. Embora a maioria dos habitantes não tenha posse oficial de suas residências em todo o Poço da Draga, a improvisação de residências no Pocinho chama a atenção dos moradores mais antigos.

Mapa com destaque para as duas ruas principais do Poço da Draga: a Rua Viaduto Moreira da Rocha e a Travessa Cidal. Disponível em: Google Maps
Esboço de mapa onde se localiza o aglomerado urbano do Poço da Draga (à esquerda da avenida, separado pela rua transversal que dá acesso à praia). Próximo a área de mangue se localiza o “Pocinho”, caracterizado por ocupações recentes de novos moradores da região. Fonte: Edson Alencar Collares de Bessa 
Poço da Draga na década 70
Banho improvisado por falta de água encanada.
Site oficial poço da draga
Nascido no Poço da Draga, filho de pais que moram no local há mais de cinquenta anos, o agente de saúde Sílvio, afirma que “o pessoal do Pocinho não respeita os mais antigos, fazem um monte de casinha de papelão aqui e poluem o manguezal”. Sílvio destaca que brincava na região do Pocinho quando era criança. Atualmente não deixa seus filhos pequenos fazerem isso, pois teme pela segurança dos filhos ante a uma possível hostilidade de tais “invasores”.

O aumento da violência e do tráfico de drogas é outro fator alarmado pelos interlocutores como decorrente da ocupação recente do Pocinho. O comerciante Ataíde, afirma que devido à presença dos “forasteiros” do Pocinho, a truculência policial se acentuou nos últimos anos dentro do Poço da Draga. 

A polícia chega aqui e trata como se todo mundo fosse marginal, delinquente. Como se todo mundo cheirasse droga, fosse vagabundo. E não é assim! Aqui tem famílias, pessoal que mora aqui está há muito tempo. Meu pai tem 70 anos de Poço da Draga! Eu nasci aqui e nunca vi tanto desmando da polícia aqui dentro como agora. E a gente pode fazer o quê, me diz? Nada. Por que os “homens” vem aqui dentro do Pocinho pegar os traficantes escondidos de outros bairros lá. Os “playboy” da Aldeota vem aqui pra pegar droga deles também, até filho de político famoso já foi preso lá dentro [do Pocinho] com drogas... Desse jeito, aí que nossa fama com as autoridades vai para o espaço de vez! Eles pensam que aqui todo mundo é igual, que é tudo bandido. (Ataíde, em 08/02/2014).
Foto do livro de Paul Walle em 1912. Ainda não havia qualquer vestígio de moradia na área do Poço da Draga.
Acervo J. Terto de Amorim
Foto aérea de Amélia Earhart sobrevoando o Poço da Draga em 1937. 
Conseguimos observar algumas pequenas embarcações (já existia atividade pesqueira)
e algumas casinhas, ainda surgindo de forma tímida. Nascia assim a comunidade do Poço da Draga.
Ataíde afirma que compreende a situação dos moradores do Pocinho. Porém, ele acha que ali não é lugar para eles. A convivência com insalubridade e condições desfavoráveis de higiene são aspectos que deveriam fomentar alternativas de saída do local para aquelas pessoas. “Morar no Poço da Draga já é difícil e lá é quase impossível”, ele destaca. Segundo o comerciante, as pessoas que moram no Pocinho estão lá mais pela localização do Poço da Draga. “Aqui é perto de tudo, próximo ao Centro e a praia, além de ser uma favela no meio da Praia de Iracema, avalia Ataíde como fator de permanência dos ocupantes do Pocinho.

Ontem e Hoje do mesmo ângulo.
Foto atual: Iago Albuquerque.
O estudante André, cujos pais moram no Poço da Draga há décadas, ressalta que o Pocinho é um “local de discórdia”. Ele afirma que “não há sossego lá” devido ao entra-e-sai de pessoas vindas de outros bairros. Acostumado a frequentar a região do Pocinho desde a infância, André relata que já viu muitos jovens “se perderem” nas drogas e no crime pela influência dos moradores do Pocinho. Em um local com pouca expectativa de emprego e estudos para as pessoas, a criminalidade parece ser uma oportunidade, segundo a avaliação dele. André lamenta a perda de muitos amigos para o “mundo das drogas” e do crime. E no sobressalto entre a presença de ocupantes indesejados e os transtornos causados por eles, André destaca a homogeneização de opiniões externas sobre a totalidade de moradores do Poço da Draga. Nesse ponto ele parece concordar com Ataíde. Contudo, André vai além da ação policial e destaca as opiniões de quem passa pelo Poço da Draga.

As pessoas que passam por aqui nem sequer veem a gente [dentro do Poço da Draga]. Só se for muita atenção mesmo. Por que nós estamos aqui no meio das coisas bonitas para os turistas, eles [provavelmente, os governantes] querem esconder a gente. Esse pessoal vem de fora [os moradores do Pocinho], cometem crimes lá fora e vem se esconder aqui. Quem sofre os assaltos ou tem os filhos presos por estarem com drogas já fica com raiva da gente. E começa todo mundo a falar mal. Eu já vi gente passar na avenida dizendo que tem medo de vir aqui na Praia de Iracema por que tem essa “favelinha” cheia de bandido, que somos nós. (André, em 14/10/2014).

Imagem da década de 60. Vemos a ponte dos Ingleses, a ponte Metálica e a comunidade do Poço da Draga.

Rosa afirma que até uma colunista social de um jornal famoso da capital cearense já publicou um texto afirmando que o Poço da Draga é uma “favela perigosa, cheia de delinquentes”. Contudo, enfatiza que nessa ocasião houve união das pessoas para exigirem direito de resposta a esta colunista. Concedido e publicado pelo jornal, o direito de resposta veio em forma de uma carta redigida por vários moradores do Poço da Draga. Ela interroga “como é que pode uma pessoa que nunca entrou na comunidade falar mal da comunidade? Entendeu? Ainda bem que a resposta veio, pois a gente é assim, a gente não deixa barato não!”.

A localização do Poço da Draga próxima à área litorânea da Praia de Iracema é percebida por muitos moradores como ameaça dessa “cobiça” e “inveja” de muitos, bem como fato preponderante para tentativas de remoção. Embora elas saibam do risco iminente de perderem suas residências, as pessoas que vivem no Poço da Draga têm alguns benefícios quanto a estarem naquele local. Dentre eles, está a proximidade ao Centro da cidade e à praia. Muitos, como Clóvis, nem sequer pensam na possibilidade de sair da região. Isto porque “dá pra fazer tudo a pé aqui, não precisa pegar ônibus pra ir ao Centro e a praia é aqui do lado”, afirma ele. Sílvio brinca com a repercussão de obras¹ na região ao afirmar que “todo mundo tem inveja daqui e queria estar nessa região privilegiada da gente”.

No Centro de Fortaleza se localiza o Posto de Saúde Paulo Marcelo (Rua 25 de março, nº 607), que serve aos moradores do Poço da Draga. Conforme afirmado pelos moradores, a praia é fonte de beleza e lazer a alguns passos da maioria das casas. Os estudantes, em sua maioria de escola pública, tem acesso à educação básica por escolas localizadas também no Centro de Fortaleza. Para os moradores católicos, a arquidiocese que coordena a região do Poço da Draga é a própria Catedral Metropolitana de Fortaleza, fato este enaltecido por alguns, como Bianca. Ela diz com entusiasmo que “aqui [no Poço da Draga] é tão bom que somos abençoados é pelo arcebispo, não é por qualquer padre não”.

Rosa afirma que todos esses benefícios da localização do Poço da Draga são fatores de risco para a permanência dos moradores em suas residências. Embora ela já tenha visto várias tentativas de implantar empreendimentos na região não darem certo, Rosa destaca que as transformações estão ocorrendo gradativamente e, a cada dia, o território do Poço da Draga parece ser mais curto. Ela compartilha as perspectivas de outros moradores mais antigos ao afirmar que “hoje já não me sinto mais aqui como minha praia”. Isto porque “estão sempre inventando coisas para fazer aqui e tirar a gente”.

O que se mostra em face tanto aos fatos históricos quanto aos relatos das pessoas é que as obras constantes (ou suas tentativas) no Poço da Draga parecem sempre estar ligadas às remoções dos moradores. Em vez de uma tentativa de melhoria das condições de moradias das pessoas e valorização do espaço “privilegiado” do local com incentivos para a manutenção de quem está lá há muito tempo, o que se vê é sempre algum movimento para se tentar a retirada. 

Poço da Draga em 1975. Foto Correio do Ceará. Acervo Renato Pires.
O que se observa é a presença, no Poço da Draga, de obras que estimulam melhorias na região de seu entorno e não propriamente no espaço urbano em que se localiza a moradia das pessoas. Ligadas a etapas e períodos históricos distintos, as obras fomentadas por agentes externos (ligados muitas vezes aos órgãos de governança) para a região do Poço da Draga são, em sua quase totalidade, excludentes das pessoas que lá vivem.

Comunidade do Poço da Draga na Praia de Iracema. Década de 80. Acervo Renato Pires.

Leia também a Parte I

¹O contexto que se insere aqui é referente a outra obra que foi projetada para se estabelecer na região do Poço da Draga, o Centro Multifuncional de Feiras e Eventos (CMFE), em 2001.

Crédito: ADERALDO, Mozart Soriano. 1993. História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza, CE: Edições UFC./Edson Alencar Collares de Bessa - O Poço da Draga e a construção do acquário/Arquivo Nirez/ROCHA JR., Antônio Martins. 2000. O turismo globalizado e as transformações urbanas do litoral de Fortaleza. Arquitetura e estetização da praia de Iracema. 2000. Fortaleza, CE: Dissertação de Mestrado em Arquitetura, Universidade Federal do Ceará (UFC)./Site Comunidade Poço da Draga/ Jornal O Povo/Acervo pessoal

domingo, 14 de abril de 2019

O centenário Poço da Draga

Comunidade do Poço da Draga em 1964.
Acervo O Nordeste
O Poço da Draga se localiza nas proximidades da foz do riacho Pajeú, na orla marítima fortalezense, histórica pela formação portuária. Originalmente composta por uma colônia de pescadores, os primeiros habitantes se firmaram na região por volta de 1906 com a construção de um pequeno porto à beira do mar no local. Segundo informações de interlocutores, a Colônia de Pescadores Z-18 se formou em torno da região inicialmente por volta de 1906 devido à construção da Ponte Metálica, o píer improvisado que servia de ancoradouro de embarcações, embarque e desembarque de passageiros e fluxo de mercadorias. Este porto improvisado foi chamado de Ponte Metálica e tinha estrutura de ferro, servindo de ponto para ancoragem de embarcações. Conforme data esta manchete de jornal, a ponte tinha estrutura especializada para o trânsito marítimo daquele período:

A ponte metálica funcionava como porto na metade do século
passado. Com a revitalização e impossibilidade de seu restauro,
será construído ao lado um novo espigão que funcionará como
observatório e ancoradouro de pequenas embarcações.
Em 1860 foi iniciada a construção de um paredão no Meireles, e para a fixação das areias do Mucuripe, fazer o plantio de gramas nas dunas. Estudos do engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva resultaram na construção de um viaduto na altura da Alfândega, todo de ferro, com piso de madeira, que ficou conhecido como “ponte metálica”. A construção foi iniciada no dia 18 de dezembro de 1902 e sua inauguração se deu em 26 de maio de 1906. Tinha uma escada móvel para acompanhar as marés, onde as pessoas subiam e desciam para embarque e desembarque. Também existia guindaste para transporte de mercadorias. Tanto as cargas como os passageiros embarcavam em lanchas e botes, indo até o navio. [...] Em 1922 foi reconstruída, desta vez em concreto armado. [...] No governo de Epitácio Pessoa, a ponte foi reconstruída e dado início à construção do Porto de Fortaleza, uma nova ponte, que ligaria a terra firme a uma ilha submersa à 900 metros dali. Chamou-se esta outra ponte de Ponte dos Ingleses, devido ser construída por uma firma inglesa, a Morton Griffths. A outra ponte começou a ser chamada de ponte velha (Jornal O Povo, s/d, apud FEITOSA, 1998, p. 191).


Essa estrutura da ponte ainda está presente atualmente. Serve de lazer para alguns moradores do Poço da Draga. Também atrai atenção de alguns visitantes que frequentam o local, principalmente os interessados em apreciar a paisagem e fazer incursões ao mar por meio de saltos. Contudo, a deterioração da ponte, que não foi mais reformada desde a desativação do porto, é notável. Vale ressaltar que a outra ponte construída, a Ponte dos Ingleses, fica próxima da “ponte velha”, a Metálica, distanciando-se dela apenas alguns metros.

Poço da Draga em 1974. Acervo Delberg Ponce de Leon

Com a instalação do Porto do Mucuripe, em 1950, a região do Poço da Draga, que incluía as duas pontes, foi abandonada pelos investimentos no setor portuário. Porém, o local passaria a ter outros focos de obras. Inclusive o nome do espaço se deve a este período anterior à construção do Porto do Mucuripe. Em história presente em algumas das muitas narrativas de moradores antigos, é possível entender que o “poço” é devido à profundidade do mar próximo à ponte que servia de ancoradouro de embarcações naquele período inicial de ocupação da região e a “draga” é o instrumento de sucção de areia e dejetos marítimos presentes nos tempos em que o porto funcionava no local.

Poço da Draga na década de 70.
Em mudanças paisagísticas constantes, o Poço da Draga se firmou como lugar de moradia para muitas pessoas. De casinhas na beira da praia aos sobrados duplicados e rearranjados, o espaço urbano se alternou durante gerações. Os moradores mais antigos são os mais surpresos com as modificações do meio. Clóvis, um portuário aposentado de 79 anos retrata suas próprias experiências de convivência durante pescarias e banhos de mar da adolescência à idade adulta. “Aqui [no Poço da Draga] é lugar de lazer desde sempre, quem veio pra cá quis ter trabalho e diversão desde o começo”, afirma ele. Chegado ao Poço da Draga quando criança, Clóvis viu desde menino seu pai pescador ir ao mar em busca do sustento da família. Acometido por problemas de saúde durante a infância e desestimulado à vida marítima pelo próprio pai, Clóvis decidiu ingressar em um emprego como funcionário do recém-criado Porto do Mucuripe logo após haver cumprido serviço militar no exército, aos 18 anos. Com o equivalente ao Ensino Fundamental incompleto, ele passou nas provas de seleção e foi aceito como portuário inicialmente no setor de transporte de mercadorias, descarregando objetos das embarcações.

Poço da Draga vendo-se a Sefaz
Eu já ajudava a carregar os peixes e as coisas dos barcos aqui [no Poço da Draga quando era porto]. Depois que mudaram o porto para o Mucuripe, a gente ia tudo pra lá de caminhão. O sindicato [dos portuários] ainda era aqui quando o porto de lá foi inaugurado. Vinha o chefe do sindicato aqui e fazia a chamada para a gente ir trabalhar. Nós íamos tudo num caminhão, que vinha buscar a gente aqui e levar pra lá. Aumentou muito a quantidade de mercadorias quando o porto foi pra lá, nem se compara. Aqui era pouquinha coisa. Eu era menino “véio” quando ia pra lá, achava era bom ir em cima do caminhão. Passeava até chegar ao cais. Quando voltava pra cá ainda ia era jogar futebol na praia (Sr. Clóvis, em 06/02/2014).

No período em que estava diariamente envolvido na empreitada de ir até o Porto do Mucuripe para trabalhar, Clóvis passeava pelo local de moradia geralmente nos finais de tarde. O pôr-do-sol visto da Ponte Metálica, atesta ele, é inigualável em beleza: “a satisfação de morar aqui desde quando eu era novo é ver essa lindeza de sol caindo no mar todo dia... quando você olha pra um negócio desses esquece até dos problemas que tem no trabalho”.

Antigo Porto e casinhas no Poço da Draga na década de 20. Acervo Carlos Juacaba

O senso estético aliado ao lazer da região está compreendido como marca registrada do Poço da Draga, destaca Francisca. A pedagoga, cujos pais vieram para a região antes mesmo dela nascer, guarda várias memórias do local anteriormente. “A vida pacífica daqui chamava a atenção antigamente, tudo era tranquilo, as crianças brincavam na rua até tarde, não tinha esse perigo todo que existe hoje em dia”, ela compara. Francisca recorda que, mesmo acometida por uma grave enfermidade durante boa parte de sua infância, costumava ir à praia quando podia e se admirava sempre com a beleza da região. “Era tudo menos complexo do que é hoje, a gente podia andar por aqui sem se preocupar se podíamos estar atrapalhando algo”, analisa ela ao afirmar que antigamente não havia interesses de governantes em promover modificações urbanísticas na região para deixar o ambiente “apropriado aos turistas” como ocorre atualmente.
Praia do Poço da Draga em 1980.
Acervo Celso de Oliveira Silva
Ao comparar as habitações do passado e do presente no Poço da Draga, Rosa se emociona. “As casas antigamente eram pequenas, na beira do mar”, enfatiza a vendedora. Rosa também afirma que devido às intervenções na região motivadas pela instalação de um estaleiro e especulações constantes em remover habitações de moradores para fomentar a transformação da área em local de construção de embarcações, as casas do Poço da Draga foram se modificando com o decorrer do tempo. Por ter nascido no local, ela pôde acompanhar de perto as mudanças na paisagem. Alguns aspectos de sua própria trajetória de vida se entrelaçam com as modificações espaciais que ela observa:

Nasci no Poço, meus pais também moram aqui. A gente morava na beira da praia numas casinhas de madeira, tinha colônia, mas depois que essa Indústria Naval que fica aqui nos fundos, nesse estaleiro, conseguiu tirar, indenizar as pessoas, muitas foram para outros cantos, acabou a colônia de pescadores. Quem pôde comprou a casa aqui, porque a gente que mora lá perto da praia, aqui era como se fosse a Aldeota, né? Só morava aqui quem tinha mais condições, então meu pai conseguiu comprar uma casa aqui e a gente mudou pra cá, mudou só de cantinho, mas continuou na mesma comunidade. Eu tinha uns dois ou três anos quando a gente saiu da beira da praia e veio pra cá, minha mãe ficou morta de feliz, o sonho dela era morar aqui porque lá quando a maré enchia a água passava por debaixo da casa. Eu não tenho muita recordação disso, pois eu era pequena; aqui era uma casa velha que meu pai comprou e fez uma mercearia, era a única que tinha, depois foram surgindo outros comércios; quando eu casei, ele me deu aqui para eu morar, porque aí acabou o comércio, mas ele ainda mora na mesma casa (passa duas casas da minha). Desde que eu já era menina eu via as casas de taipa, de madeira, que aqui era areia, eram palafitas, de madeira, com o tempo foi que as pessoas foram remodelando as suas casas, mas aqui quando era colônia de pescadores há 100 anos aqui era areia da praia e palafita (Rosa, em 04/11/2014).

Poço da Draga na década de 70. 

Construção da Ponte dos Ingleses. Site Poço da Draga

A alusão de Rosa à “Aldeota” se refere às ruas principais hoje presentes no Poço da Draga, mais valorizadas que as demais. Aldeota é um bairro de classe média alta, conhecido popularmente por ser foco de investimentos dos governantes e centro monetário da capital cearense. Assim, em divisão interna no Poço da Draga, a “Aldeota” do Poço são as duas ruas principais, mais valorizadas que o restante dos logradouros, inclusive os imóveis à beira da praia que foram retirados com a construção do estaleiro.

Acervo pessoal de Clóvis Acário
Relembrar um passado longínquo com habitações diferentes das atuais pode não ser um exercício apenas de nostalgia. Pelo contrário, é possível contemplar aspectos dificultosos nesse período anterior. Rosa afirma que no período em que o Poço da Draga era constituído basicamente por palafitas e casas de taipa havia problemas de abastecimento de água para os moradores. “Não havia água para nós, só tinha a água empoçada nas ruas, só no lamaçal quando chovia”, lamenta. Até hoje sem saneamento, o Poço da Draga sofria anteriormente também por não possuir água encanada para os moradores. Clóvis relaciona essa ausência de água antigamente com o descaso constante dos governantes, independente do tempo. “Nunca nenhum político fez nada por nós!”, reclama ele. E complementa afirmando que “até a água foi os próprios moradores que conseguiram junto à CAGECE.

Fotografia tirada por Amelia Earhart. Vemos o Poço da Draga, a Sefaz e a antiga Igreja de São José.

Comerciante no Poço da Draga desde meados dos anos 1970, Valdir relembra a escassez de água como condição que desiludia muitas pessoas sobre a permanência no local. Abastecidos pelo manguezal anexo à foz do rio Pajeú, em água muitas vezes insalubre, Valdir conta que “o povo do Poço da Draga já se achava excluído desde essa época, até que se juntaram e fizeram um amontoado de gente pra ir até a Prefeitura pegar o direito de ter o que beber”. Este movimento de organização dos moradores para obter água encanada ocorreu somente no final dos anos 1980, devido basicamente a formação da Associação dos Moradores do Poço da Draga (AMPODRA, instituída em 1980). Hoje, o comerciante espera que a mesma vontade coletiva que angariou recursos para implantar o abastecimento de água se efetive na consolidação do saneamento básico das ruas. Ele indaga, que “se você perguntar para a maioria das pessoas que moram aqui o que elas mais querem, elas vão te dizer: esgoto! É muito ruim morar num canto em que os becos são como valas de porcarias correndo para o mangue”.

Poço da Draga em 1937. Vemos ao fundo, a Light, o Gasômetro e a Santa Casa. ano 1937

Valdir é proprietário de uma pequena mercearia no Poço da Draga. Vê movimento diário de pessoas nas ruas do aglomerado urbano. Sabe que as condições dos moradores já mudaram bastante para o que eram no passado. Como exemplo de alguém que viveu situações difíceis nas ruas encharcadas de lama, ele destaca a ferrovia que cruza o Poço da Draga como aspecto de deterioração de um passado que poderia ser mais promissor aos dias atuais. Da realização de transporte de mercadorias a uma velha plataforma desativada em frente ao seu comércio, “a linha do trem”, para Valdir, é sinônimo de que “algo errado” aconteceu àquele lugar. “A gente se sente inútil hoje em dia pela história que isso aqui tem [apontando para o trilho], aqui era pra ser um local importante, valorizado, amado por toda a cidade, mas o que a gente vê é que ninguém quer saber de nós”. Valdir deseja que a história antiga do Poço da Draga conjunta à da capital cearense poderia ser um alicerce para que a permanência dos moradores em condições sanitárias minimamente satisfatórias fosse garantida pelos órgãos estatais de governança.

Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.
Isadora, dona de casa aposentada, se pergunta diariamente sobre quando deixará de ver fluxos de dejetos, sem limpeza prévia, indo diretamente ao mangue anexo ao Poço da Draga. Isadora mora desde criança nas proximidades do mangue e não se conforma com a situação inóspita que vive. Ela relembra o passado em que “tinha menos gente aqui, o riacho era mais limpo e mais fácil seria do governo colocar os canos” (sic). Viúva de um marido estivador, Isadora mora há muitos anos com dois netos em sua residência que habita desde a juventude, herdada de seu pai e hoje reformulada. Próxima ao mangue, sua habitação foi modificada com ajuda de uma amizade pessoal de um de seus filhos com um agente de obras da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF). A ampliação do teto da residência e a subida do chão evitaram constantes alagamentos que ela sofria no período de chuvas fortes. Com a intensidade da água invadindo a casa¹, ela constantemente tinha que colocar móveis em suspenso e dormir em redes improvisadas por sobre as camas. Para Isadora, a mudança de sua casa é decorrente de um processo maior de modificações em todo o espaço que também abriga as residências de seus vizinhos. “Do mangue limpo ao sujo, da rua velha encharcada ao calçamento que traz água pra dentro de casa, tudo cheio de gente aqui hoje em dia, as coisas tinham que mudar”, diz a aposentada. É interessante notar o destaque dela para as transformações ocorridas no Poço da Draga como uma perspectiva de aprendizado acumulado:
Quem nunca viu os barquinhos saindo daqui de casa [antigamente]? Era só pescaria animada. Armavam os barcos aqui mesmo, perto do riacho. Hoje tá tudo cheio de gente amontoada numas casas de papelão lá [no mangue]. Se continuar assim, não tem político que dê jeito aqui mesmo, vão achar mais fácil tirar a gente daqui. Eles [os políticos] confundem tudo, acham que o povo que mora aqui é tudo igual. Mas o que aconteceu era pra todo mundo ter cuidado, não ter deixado sujar tudo aqui... Queria ver se eles tivessem deixado tudo bonito se a gente ia ter medo de enchente hoje em dia! Duvido! Eles deixaram tudo se acabar, de propósito. A gente ainda luta, corre atrás, mas é difícil, sabe? Tudo tá diferente aqui, eles querem que fique pior para nós mesmos pedir pra sair (Isadora, em 14/02/2014).

Mestre Teotônio construindo um barco. Detalhe para a Catedral (em construção), que ainda podia ser vista sem muitas dificuldades da praia e também para as casinhas de pescadores. Acervo Joanna Dell'Eva

Lido Mar II já concluído no Poço da Draga. Acervo Joanna Dell'Eva

Na fronteira entre as memórias de infância e o que se vivencia atualmente é que, muitas vezes, se estabelece algum tipo de insatisfação. Potencialmente exposto como causa de problemas sanitários, a ausência de saneamento básico nas ruas do Poço da Draga abrange outra série de ligações das pessoas com o meio onde vivem. Descaso por parte dos órgãos governamentais é uma queixa recorrente e alarmante. Estar em um ambiente à margem da execução de obras de melhorias sanitárias já seria um motivo de questionamento. E isso se amplia com a ausência de tais melhorias em um local que existe há muitos anos, como o Poço da Draga. Por saberem que o local onde moram cada vez mais faz parte de um processo de tentativas para o “enobrecimento” do espaço litorâneo voltado ao turismo fortalezense, as opiniões de muitos moradores se alternam em que possa haver benfeitorias futuras nas ruas do Poço da Draga ou que haja uma inevitável remoção que se complementa em anos de destruição gradativa da vontade deles mesmos em permanecerem no local pela não-efetivação de instalações subterrâneas de redes de esgoto na região.

Poço da Draga na década 1970.  Site oficial Poço da Draga

A desesperança de Isadora quanto aos governantes parece se adequar a uma vontade mais ampla deles de que os moradores do Poço da Draga saiam do local onde vivem. Um dos principais aprendizados do depoimento dela (aliado um pouco aos discursos de Valdir e Rosa) é que a não-execução de obras pode ser indício proposital para que, como afirma Francisca, “cada um faça só pra si mesmo” e assim se “perca o senso de coletivo”. O que se percebe, historicamente, no passado desses interlocutores diante do espaço onde moram é que os indicativos de mudanças para melhorias das condições de subsistência e higiene (buscar água e esgoto) estiveram sempre à parte dos interesses dos gestores públicos. As próprias pessoas é que tiveram que lutar para se ter água independente da iniciativa dos agentes de governança. 

Poço da Draga na década de 70. Vila de pescadores. Site oficial Poço da Draga

Francisca destaca o processo precário de pavimentação das ruas do Poço da Draga como mais um exemplo de não-assistência direta e explícita dos órgãos governamentais que são encarregados do planejamento urbano.
Com o fim gradativo da colônia de pescadores e a ampliação de construções nas habitações mediante muitas vezes às invasões de novos moradores em áreas adjacentes ao Poço da Draga, a diversidade de pessoas no local se tornou foco de inquietações principalmente nos moradores mais antigos. Vale ressaltar que o Poço da Draga se consolidou como local de habitação não só por meio da colônia de pescadores, mas também por ser um ambiente fornecedor de mão de obra portuária. Nesse sentido, é possível verificar o caráter urbano do espaço desde a sua fundação. Nunca se tratou de uma aldeia de pescadores com autossuficiência numa prática comunitária de subsistência somente a partir da pesca. As construções da ponte e da ferrovia indicam que os moradores do Poço da Draga sempre estiveram vinculados a cadeias produtivas e comerciais de escala maior do que a da “comunidade”.

¹As queixas recorrentes de alguns moradores do Poço da Draga com inundações de suas residências se devem a, principalmente, dois eixos de fatos ocorridos na região: a instalação recente de habitações na área do mangue, obstaculizando o fluxo de águas pluviais, que antes iam do mangue em direção ao mar; e a instalação do estaleiro por tomada de parte do terreno do mangue que dá acesso ao mar, pela Indústria Naval do Ceará (INACE), em meados dos anos 1970.

Crédito: ADERALDO, Mozart Soriano. 1993. História Abreviada de Fortaleza e Crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza, CE: Edições UFC./Edson Alencar Collares de Bessa - O Poço da Draga e a construção do aquário/Arquivo Nirez/Site Comunidade Poço da Draga/ Jornal O Povo/Acervo pessoal

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