Foto arquivo OPovo
A primeira casa do primeiro conjunto construído à beira do Lago Jacarey foi comprada por José Carlos Ferreira Maia, 62, em 1980. A Construtora Cearense anunciou na seção de imóveis dos anúncios populares o início do empreendimento que ficou conhecido como Mansões do Lago, na Avenida Viena Weyne. Cada uma das sete primeiras casas, todas de pavimento térreo, custava em torno de quatrocentos mil cruzeiros.
A preços de hoje, valem R$180.000,00, em média.
Desde sempre, o bairro Cidade dos Funcionários compreende toda a extensão da Avenida Oliveira Paiva, desde a BR-116 até a Avenida Perimetral - atualmente denominada Avenida Washington Soares - no cruzamento conhecido como Seis Bocas, exatamente onde funcionava o restaurante
Toca do Coelho (é o novo!!). Descendo 400 metros à direita na metade da Oliveira Paiva, sentido leste-oeste, chega-se ao lugarejo da Cidade dos Funcionários conhecida como Lago Jacarey. Seu Maia relembra como era difícil o acesso, e mais difícil ainda a aceitação da família em mudar-se para a sonhada casa própria. Os dois filhos adolescentes e a esposa saíram a contragosto do sobrado alugado na Aldeota, na Rua Torres Câmara, reclamando do isolamento e da distância da nova morada. Para piorar o fato de que apenas uma linha de ônibus servia o local, fazendo a rota Praça do Coração de Jesus - Cidade dos
Funcionários via BR-116, a instalação de aparelhos telefônicos na área era um luxo para poucos. Além de ser caro, por vezes demandava tráfico de influência envolvendo algum “peixe” da extinta Teleceará.
Apesar da falta de infra-estrutura e das constantes reclamações familiares, Seu Maia se sentia realizado. A beleza e a paz do local lhe davam a certeza de ter feito um bom negócio, que dentro em breve seria reconhecido pelos que lhe condenavam naquele momento. Em frente à casa, nascentes de água limpa brotavam do solo e abasteciam o Lago Jacarey. No entorno, o matagal, abrigo natural de cobras e escorpiões nativos, os quais eram motivo de mais uma dentre as tantas queixas da família recém-chegada.
De quando em vez, a invasão dos abomináveis vizinhos no território dos Maias obrigava os novatos a fatídica missão de exterminar os peçonhentos. O passo seguinte era exibir ao pai o monstro abatido como troféu, na tentativa inútil de convencê-lo a mudarem dali.
Foto Arquivo Tv Verdes Mares
E por falar em inutilidade, nada se compara a placa indicativa com a inscrição BAIRRO CAMBEBA, afixada na praça do Lago pela Prefeitura de Fortaleza, faz uns cinco anos. É perda de tempo querer convencer aos moradores, em plena praça, que o Lago é parte do Cambeba. Por mais que a placa insista negando, “o Lago é bem aqui, o filé da Cidade (dos Funcionários), e o Cambeba é lá acolá, pras
bandas da Messejana! Esse povo lá sabe de nada!”, bronqueia o Maia, cheio de razão e de vontade de arrancá-la.
Tem jacaré aí, menino!
Difícil saber de onde vem a palavra Jacarey. No Aurélio, consta a grafia com “i” no final, e designa o nome de uma planta da família das ramnáceas, da qual o juazeiro é a espécie mais conhecida. Dentre os moradores mais antigos, não há notícia de um só pé de juá nos arredores, vivo ou derrubado nos últimos 30 anos. Ou seja, no dicionário da língua portuguesa o significado não guarda qualquer semelhança com a denominação dada ao Lago.
A profundidade media aproximadamente dois metros e meio e conta-se que, ao longo dos últimos trinta anos,
uma meia dúzia de pessoas, crianças e adultos, morreram afogadas em suas águas. Esses mesmos moradores
falam de um tempo em que ali habitavam jacarés, mas não há qualquer relato que confirme a preexistência de
répteis crocodilianos. No máximo, horripilantes répteis como cobras e escorpiões e o mais asqueroso dos batráquios, famoso sapo-cururu. Alguns dizem Jacaraí, outros Jacareí, mas são unânimes em difundir o folclore do bairro que dá conta de que a origem da palavra vem da aglutinação de jacaré+aí, talvez criada para amedrontar as crianças e assim livrá-las de situações de perigo.
Copacabana do Cambeba
Distante duas quadras do Lago, no rumo do Cambeba, mora a aposentada Lemirte Pinheiro de Castro, 71, ex professora de Geografia do ensino médio, que chegou ao bairro em 1976. Disposta a terminar o namoro da filha com um rapaz que não lhe era bem-visto, restou-lhe deixar a casa própria do Parque Araxá, assumindo pesadas prestações para aquisição do novo imóvel. Também para ela não foram poucas as queixas de seus familiares, e com a agravante de que Dona Lemirte odiou o local desde o primeiro
dia. “Tudo era difícil, tudo era longe. Aqui era só brejo”, diz, apontando para a rua. Ela conta que um dia cansou de se martirizar, de esconder a filha e de esconder-se a si própria. Substituindo auto-piedade por determinação a viver melhor, saiu de porta em porta conclamando os vizinhos para juntos iniciarem uma espécie de mutirão de melhorias. Com a primeira quantia arrecadada contrataram calceteiros - profissionais que trabalham na pavimentação de ruas - e aos poucos foram desmatando, sentando pedras e fincando placas nas ruas, como forma de minimizar o isolamento que muitas vezes implicava no não recebimento
de correspondência e na falta de prestação de serviços domiciliares, como farmácias, gás butano etc.
Em pouco tempo os serviços coordenados por Dona Lemirte chegaram ao Lago. Com as contribuições regulares de aproximadamente 50 moradores pagavam-se trabalhadores pela capinagem periódica das margens, cerca de 500 metros de contorno. Aberto o acesso ao espaço, a combinação entre a necessidade de lazer das crianças e o tempo livre dos pais nos finais de semana resultou na rotina dos piqueniques, oportunidade para todos fartarem-se de nadar e de comer camarões pescados na hora.
À época, apelidaram o lugar de Copacabana do Cambeba, onde permaneciam até o limite do pôr-do-sol. Mais que isso, impossível, pelo menos para quem tem sangue nas veias. O coaxar eufórico da saparada funcionava como toque de recolher, anunciando a pontualíssima chegada dos mosquitos hematófagos. Às pressas e com o que restava de iluminação natural juntavam-se os teréns e batiam em retirada, deixando livre a área para os verdadeiros donos do pedaço.
A união pela praça
Em 1985, e por iniciativa própria de Dona Lemirte, nasceu a UNILAGO (Associação dos Moradores do Lago Jacarey), entidade por ela presidida durante o biênio inaugural e sobre a qual pouco comenta e muito lamenta. Entre lágrimas, queixa-se de artimanhas políticas armadas por pessoas que colocavam interesses pessoais acima das necessidades da comunidade, o que determinou o abandono definitivo daquele que foi seu mais importante projeto.
Para espantar a tristeza, retomamos estrategicamente o assunto do meio ambiente. Dona Lemirte relembra a
qualidade da água do Lago, a vegetação abundante no entorno, os bandos de garças e aves pernaltas, os cardumes e os enxames, a harmonia e interdependência entre os coletivos. Com a autoridade de quem domina a Geografia, detém-se na explicação dos conceitos de bioma lacustre e cadeia alimentar e finaliza defendendo a necessidade urgente de revitalização e conservação do Lago.
Declara-se “revoltada” com o assoreamento, responsável pela profundidade atual de cerca de um metro. “Devido ao crescente número de ligações clandestinas de esgoto, hoje em dia só uma ou outra garça arrisca atravessá-lo a pé, bicando uma larvinha aqui, outra acolá. E a associação (UNILAGO) não faz nada!”, protesta. Pergunto-lhe então sobre a atuação da atual diretoria, e ela diz que pouco sabe, não conhece os membros. E alfineta: “Na minha época, todo mundo me conhecia!”. Pura verdade. Logo de manhã cedo, dá para ver as bocas de manilha despejando líquidos espumantes na água turva onde uma garça solitária cisca indecisa entre aguapés, dejetos orgânicos e materiais plásticos. No centro, onde é mais profundo,
dois homens em pé, com os peitos à mostra, arriscando umas piabinhas com uma tarrafa de trama miúda. À noite, por hábito natural, é hora dos ratos enormes abandonarem a morada nas manilhas e saírem à caça. Também é verdade que a fundadora Lemirte, assim como o pioneiro Maia, têm lugar de destaque dentre os moradores mais conhecidos e respeitados do bairro.
Nas noites de sexta e sábado da primeira semana do mês, uma banca da UNILAGO é armada no meio da
praça, a fim de recolher a contribuição voluntária mensal de cinco reais dos associados. Pedi para ver a prestação de contas, e a resposta foi que trariam na noite seguinte, domingo. “Não precisa, não, era só curiosidade”, disse, como forma de propiciar um ambiente mais agradável para a conversa com Dona Lurdes, 52, espécie de tesoureira da UNILAGO. Enquanto ela me preparava o recibo (moro lá desde 1997 e confesso que contribuí poucas vezes) falava sobre o muito que há por fazer e sobre como as contribuições estão escasseando (argumentei que, no meu caso, contribuí todas as vezes que a cobrança bateu à minha porta e que é esperar demais do associado que compareça à praça nas datas e horários do plantão
da UNILAGO). Perguntei-lhe sobre o que me parece mais importante, que é o fato de as ligações clandestinas desaguarem dejetos no Lago. “A Prefeitura não tá nem aí, e a CAGECE só vive enrolando a gente!” Dois diretores se achegaram, apresentando-se como Seu Antonio e Seu Oliveira, alardeando que logo, logo haverá correntes de ferro na borda do Lago e que também em breve teremos policiamento, ocupando finalmente a guarita deserta desde a instalação há mais de um ano.
Quanto à revitalização, acreditam que a UNILAGO nada pode fazer, que o assunto compete exclusivamente à Secretaria Executiva Regional II. Me despeço na certeza de que o Lago ainda vai agonizar por um bom tempo, pelo menos enquanto as gestões da UNILAGO considerarem Ecologia e Meio Ambiente questões secundárias, até que resolvam chamar a atenção dos órgãos de imprensa para a gravidade dos problemas do bairro e exigir do poder público o cumprimento das leis de preservação e conservação
ambiental.
Dia e noite , noite e dia Deixando a profundidade de lado – dá licença, Belchior? - e aparentemente indiferentes ao processo de degradação, os freqüentadores do Lago são assíduos e pontuais no cumprimento de seus objetivos. Às cinco da manhã aparecem os primeiros coopistas, e até às nove o rodísio de turmas de andarilhos é intenso. Durante esse período, babás e bebês tomam banho de sol, caninos encoleirados fazem no asfalto o passeio matinal, comerciantes abrem as portas, ambulantes de café circulam, transeuntes vêm e vão.
Às quartas, bem cedinho, um carro de som percorre as ruas do bairro anunciando a venda de frutas e verduras no ônibus da CEASA (Centrais de Abastecimento), estacionado na margem sul do Lago. A copa das ingazeiras sombreia o comércio, enquanto as vagens de sementes chacoalham ao vento, produzindo o fundo musical para o canto dos pássaros. Fascinados com o banquete multicor, pardais atrevidos não resistem à tentação e arriscam-se em vôos rasantes sobre as bancas, com bicadas certeiras nos frutos mais suculentos, espalhando delicioso aroma tutti-frutti.
Das dez às dezesseis o movimento acalma, e daí pra diante recomeçam os coopistas do crepúsculo dando voltas até perto de vinte e uma horas, repartindo o espaço com bebês e babás banhados, outras coleiras e cães, faturamentos encerrados, caixas zerados à espera do tilintar da noite, barracas improvisadas com tudo à venda, transeuntesque vão e vêm. Nos bancos, presença constante de amantes aconchegados sob o sereno do luar, agraciados com a brisa fresquinha e carregada das melodias dedilhadas pelos amadores de violão que se encontram para tirar um som Nas noites de fim-de-semana tem ferveção completa: gente em ebulição, altos barulhos e lixo demais. Trenzinhosarrodeiam o lago, abrindo caminho entre os carrosboate de forró-pancadão e a fumaça dos churrasquinhos de filé-miau e do acarajé. Tem pula-pula, profusão de barracas de bugigangas, butiques a céu aberto e, como não podia deixar de ser, as figuras carimbadas dos pirateiros
de CDs e DVDs, habituées de todos os lugares e horários. Tem pipoca, estalinho, algodão-doce, sorvete;
bola, balão, bicicleta, pedalinho e skate; dominó, novena, panfletagem, até comício tem. Todas as tribos se encontram e se identificam, cada qual na sua, porém em comum o fato de habitarmos a mesma aldeia, o Lago Jacarey, que a tudo vê mas não consegue ser enxergado em agonia, refletida no espelho turvo, impróprio e fedido de suas águas. Falta-nos consciência ecológica e responsabilidade sócio-ambiental, enfim, sensibilidade e tomada de posição, capazes de transformar observação passiva individual em indignação coletiva, tomada de posição em ação concreta envolvendo os setores privado e público. Falta-nos acima de tudo pressa, pois o tempo da degradação corre a passos largos rumo ao irreversível e abominável fim.
Crédito: Denise Gurgel