Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Theatro José de Alencar
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

As atividades de lazer em Fortaleza na época da Belle Époque ´Parte III

 

As praças, os cafés e os bondes


A transição do século XIX para o século XX trouxe consigo mais inovações e equipamentos de lazer para Fortaleza, embora alguns já existissem como é o caso do Passeio Público, mas além dele a capital dispunha de:

Praças remodeladas, jardins públicos, ruas alinhadas com bondes, transeuntes, sobrados e estabelecimentos comerciais, Passeio Público e Parque da Liberdade e seus elegantes frequentadores, Estação Central Ferroviária, mansões e fachadas art noveu, cafés, templos, escolas, portos, praias, lagos, etc. (PONTE, 2010, p.141).

Em outras palavras, um conjunto de equipamentos que representavam o lazer e cotidiano dos habitantes. Dentre estas inovações estavam a remodelação das três principais praças da cidade – a do Ferreira, Marquês de Herval (atual José de Alencar) e a da Sé, entre os anos de 1902 e 1903, receberam amplos e vistosos jardins com gradil, recheados de estatuas de inspiração clássica, canteiros de flores e plantas ornamentais, coretos, longos bancos, chafarizes e vasos importados.

Praça do Ferreira e seu jardim no início do século XX, resultado da primeira urbanização da praça. O Jardim 7 de Setembro foi inaugurado em 1902, por obra do intendente Guilherme Rocha.Era rodeado por grades, muito arborizado e florido, um lugar construído para a prática de atividades ao ar livre ou para passeios ao entardecer.

Pontes faz uma menção de como ficaram as três praças depois de sua remodelação comparando-as como réplicas do Passeio Público:

Para se ter uma ideia, os jardins eram como réplicas em menor proporção do Passeio Público encravadas, no centro daquelas praças. Isto é: além do próprio Passeio Público, a cidade agora tinha, em seus três principais logradouros, ilhas paradisíacas e seguras, onde os citadinos mais distintos pudessem se sentir como se estivessem em Paris, enquanto assistiam ao espetáculo do movimento urbano desenrolar-se em torno. (PONTE, 2007, p.181).

Segundo o historiador Ponte, a remodelação das praças teve também como intuito não só o embelezamento da cidade, mas criar um espaço de utilização pública onde a população, principalmente as crianças e os jovens pudessem praticar exercícios e atividades esportivas ao ar livre. (PONTE, 2010).

Isto se devia ao fato de que naquele momento a pratica de esportes estava começando a ser adotada pela sociedade e esta prática representava a saúde que as medidas saneadoras tanto buscavam alcançar.

A Praça do Ferreira, um dos logradouros referenciais da cidade até os dias de hoje era a principal área do comércio local, conhecida também como o coração da cidade, foi palco para a construção dos quatro cafés mais elegantes da cidade – O Java, o Comércio, o Elegante e o Iracema, todos construídos em estilo chalet francês, localizados nos quatro cantos da praça.

Café Java - Acervo Lucas

Foi no Café Java, o preferido da boemia e dos intelectuais jovens, que surgiu a ideia da criação de uma agremiação literária, conhecida como Padaria Espiritual, que se destacou pela sua inovação e irreverência. Este local foi ponto de encontro dos escritores Antônio Sales que foi o fundador da agremiação, Adolfo Caminha e Rodolfo Teófilo. (CORDEIRO, 2007).

Segundo Ponte “Boêmios e janotas deviam sentir-se como que em Paris enquanto sentavam nas mesas ao ar livre desses cafés e contemplavam fascinados o belo jardim no centro da praça” (PONTE, 2009, p.75).

Nas figuras abaixo, imagens dos quiosques do Café Comércio, Elegante e do Café Iracema respectivamente.

Café do Comércio

Café Elegante em 1908

Café Iracema em 1910. 

Nas palavras de Adolfo Caminha, no romance A Normalista o autor faz a seguinte afirmação:

[O]s cafés conviveram romântica e harmoniosamente com o pouco e lento movimento de cabriolets e bondes puxados a burro em torno da Praça, mas já não se coadunavam com o agitado séquito de pedestres, automóveis, bondes elétricos e caminhões dos frenéticos anos 20. (PONTE, 2010, p.65).


Loja Torre Eiffel.
Arquivo Nirez

Era nas praças que a sociedade se reunia para encontros nos bancos, um bate papo com os amigos e conhecidos, para admirar as vitrines das lojas que por sua vez tinham nomes franceses ou pelo simples fato de passar o tempo e imaginar-se na Europa.

Se a Praça do Ferreira passou por reformas no inicio do século XX, o mesmo ocorreu com a então Praça Marques de Herval, atualmente Praça José de Alencar, conforme afirma Silva e Filho (2004):

Em 1903, a praça é reformada na gestão do intendente municipal Guilherme Rocha, e ganha um belo jardim ornado de bancos, vasos, colunas, estatuaria, iluminação a gás e um coreto. Como preito ao chefe da oligarquia local, passa a chamar-se Jardim Nogueira Acioly. (SILVA E FILHO, 2004, p. 54).

Em seguida, alguns anos depois entra em cena na reforma da Praça Marques de Herval (Ponte, 2010) um novo equipamento que proporcionou encanto e impressionou a população, o Theatro José de Alencar.

O Theatro era a maior obra arquitetônica de Fortaleza de então e densa de significados artísticos e culturais. Era considerado um dos mais belos do país, sua estrutura toda metálica em estilo art noveau, ficou a cargo da empresa escocesa Walter McFarlane & Co., o teatro representava progresso e era símbolo da modernidade que se instalara na capital, até os oposicionistas do então presidente do Ceará, Nogueira Accioly, “tiveram que reconhecer a beleza da nova casa de espetáculos [...]”. (PONTE, 2007, p.181).

Estes logradouros tiveram um grande papel na representação daqueles belos tempos, porém quando este período entra em decadência na década de 20, na gestão do prefeito Godofredo Maciel, os jardins e os cafés tiveram que ser demolidos para que as ruas pudessem ser ampliadas e o espaço urbano remodelado novamente para dá passagem aos automóveis e demais equipamentos.


Parte I

Parte II


Crédito: Artigo 'As atividades de lazer na Fortaleza Belle Époque' de Kamylla Barboza Evaristo


sábado, 20 de junho de 2020

Theatro José de Alencar - 110 anos


Este ano, o nosso belíssimo TJA completou 110 anos. Para comemorar a data especial, posto para vocês um pequeno dossiê que fiz, contando um pouco dessa trajetória.

O theatro em construção em 1910. Acervo Lucas
Vemos o Batalhão de segurança ao lado do recém-inaugurado 
Teatro José de Alencar. Foto de 1911.


Referência artística e turística, o Theatro José de Alencar desempenha importante papel na vida cultural de Fortaleza.
Um dos maiores símbolos da cultura cearense, o nosso “Theatro” preserva no nome, a grafia de outrora. Tão grandiosa quanto às apresentações que entram em cartaz no José de Alencar, é a sua estrutura. O nome é uma homenagem a um dos maiores escritores do Ceará.
Na segunda metade do século XIX, passou-se a reivindicar das autoridades, um teatro oficial para a Fortaleza, visto que as nossas casas de espetáculos tinha existência efêmera. A atividade teatral era movida por grupos amadores.


Recém inaugurado em 1913.



Em 1894, ocorre o lançamento da pedra fundamental pelo presidente do Estado Coronel Bezerril Fontenele, que fincou sua fundação no centro da Praça do Patrocínio (posteriormente Praça Marquês do Herval e hoje Praça José de Alencar). O primeiro projeto foi de lssac Amaral e Roberto GO Bleasby e deveria ser construído sobre os alicerces de uma antiga obra que deveria ter sido um mercado a qual havia sido abandonada. Em 1896, o Presidente rescindiu o contrato da construção e submeteu a obra a exame, sendo a mesma condenada. O presidente decidiu então mandar construir a versão atual no local onde Adolfo Herbster havia projetado o Teatro Santa Tereza, em 1864, área que estava servindo de pátio para os cavalos do Batalhão de Segurança, cujo quartel ocupava a área, hoje, utilizada pelos Jardins do Teatro.

Rua Liberato Barroso, vendo-se o theatro. Foto provavelmente da década de 40.

A opereta ‘A Valsa Proibida’ mobilizou a cidade nos anos 40, quando estreou sua temporada no Teatro José de Alencar.

A opereta ‘A Valsa Proibida’ do cearense Paurillo Barroso em 1964.
Em 1904, no Governo de Nogueira Acióli, foi oficialmente autorizado à construção do Teatro José de Alencar, através da lei n° 768, de 20 de agosto. Dois anos depois, em 06 de outubro de 1908, tiveram início às obras, quando a bela estrutura metálica, importada da Escócia, já se apresentava exposta em praça pública depois de cruzar o Oceano Atlântico. A direção da obra ficou a cargo de Raimundo Borges Filho, oficial do Exército - Comandante do Batalhão de Segurança do Estado e genro do Presidente do Estado, Nogueira Acióli. A execução coube a Walter Mac Farlanes & Co e Serrancen Fondri, de Glascow, Escócia. O engenheiro responsável pela elaboração da planta foi o Militar Capitão Bernardo José de Melo, devidamente autorizado pela Assembleia Estadual por força da Lei n. 768, de 20 de agosto de 1904. A estrutura metálica deveria ter fachada em estilos Art Nouveau e Coríntio, segundo os preceitos dos chamados "teatros-jardins".
Acervo Assis Lima
A festa de inauguração aconteceu numa linda sexta-feira, dia 17 de junho de 1910, com direito a Concerto apresentado pela Banda Sinfônica do Batalhão de Segurança, sob a regência dos Maestros Henrique Jorge e Luigi Maria Smido, discurso proferido por Júlio César da Fonseca - orador oficial do Instituto do Ceará, apresentações culturais e show pirotécnico - Na praça, morteiros, foguetes, rodas de fogo e girândolas num milagre pirotécnico, abrilhantaram a festa.

Foto provavelmente da década de 40.

Antigamente, o espaço compreendido da rua Liberato Barroso entre a rua General Sampaio e a rua 24 de Maio (lado sul da praça), era ocupado por duas instituições, o Batalhão de Segurança (Polícia Militar) e a Escola Normal Pedro II - Prédio hoje ocupado pelo IPHAN, até que em 1908, parte do prédio do Batalhão de Segurança foi cedida pelo Governo do Estado para a construção do teatro.
O primeiro espetáculo foi apresentado no dia 23 de setembro de 1910, pela Companhia Dramática Lucile Perez, com a peça “O Dote”, de Artur Azevedo. O público lotou o teatro e os artistas foram muito aplaudidos.

Arquivo Assis Lima
Centro de Saúde ao lado do TJA
O José de Alencar foi projetado para ser um teatro-jardim, mas o jardim propriamente dito, só foi construído em 1975 - 65 anos após a inauguração do teatro, em uma das reformas pelas quais passou o equipamento. O jardim ocupa todo o espaço vizinho ao Teatro, na ala leste, em área que já sediou o Quartel de Cavalaria de Fortaleza e um Centro de Saúde Barca Pelon, demolido em 1973.

O Centro de Saúde que foi demolido em 1973, para a construção do jardim do teatro.
Jornal Correio do Ceará de 8/01/1959. Manchete: Farras Carnavalescas no Teatro. Concorridas Eleições de 1958, descaracterizaram o nosso TJA. Acervo Lucas

A estrutura possui duas fachadas: a primeira em estilo eclético, mas com predominância do neoclássico, e a outra em Art Nouveau, que chama atenção pelos belos vitrais coloridos. Na boca de cena, acima das cortinas, estão pintados personagens de José de Alencar. Outros dois prédios em anexo - incorporado na reforma realizada nos anos 90, fazem parte da estrutura do Teatro José de Alencar.

Registro dos anos 60. Arquivo Nirez


Registro de 1962. Acervo Lucas
No primeiro bloco, temos a sala do foyer com capacidade para 120 pessoas, no segundo, a sala de espetáculos propriamente dita apta a receber 800 pessoas, uma sala de aula transformada em espaço cênico, com capacidade para até 120 pessoas, a Sala de Teatro Nadir Papi Saboya, um palco a céu aberto, com capacidade para até 1,2 mil pessoas, um teatro de bolso com 90 lugares, o Teatro Morro do Ouro e um palco a céu aberto, com capacidade para até 350 pessoas, além da Praça Mestre Pedro Boca Rica.

Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1987, o Teatro José de Alencar passou por algumas reformas no decorrer dos anos:

  • 1918 - Recebeu instalações elétricas, trocou o piso de betume, do espaço até então usado como jardim, por ladrilhos hidráulicos e foram agregadas duas escadas internas, semelhantes às já existentes - Fundidas no Ceará.
  • 1938 - Passa por restauração, orientada pelo engenheiro José Barros Maia.
  • 1957 - As cadeiras com assentos de palhinha (estilo austríaco) são substituídas por poltronas de estofamento plástico.
  • 1974 - Completamente restaurado (Recomposição da estrutura metálica, das cadeiras de palhinha, que retornam ao seu lugar de direito, e o acréscimo do jardim lateral a leste do edifício, com projeto paisagístico do arquiteto Roberto Burle Marx).
  •  1991 - Houve a recomposição do jardim e instalação de espaço cênico ao ar livre para apresentação de espetáculos. Como parte desta reforma foi construído do lado oposto ao jardim um prédio anexo, com dependências administrativas. No anexo funcionam um auditório para 100 pessoas, a Galeria de Artes Ramos Cotoco, biblioteca especializada, bar e cozinha industrial. No pátio um palco ao ar livre onde são apresentados espetáculos produzidos pelo teatro.
  • 2013 - 22 anos depois da última reforma (que começou em 1989, durando dois anos), o Teatro, que por falta de manutenção se encontrava com a estrutura enferrujada, piso desgastado e portas e janelas quebradas, teve toda a pintura recuperada, incluindo também alvenaria, estruturas de ferro, revestimentos, pisos, portas, janelas, revisão elétrica e hidrossanitária, requalificação dos jardins e do sistema de prevenção de incêndio. O valor estimado foi de R$ 2.338.198,83, provenientes do Tesouro Estadual.
Reforma do Teatro José de Alencar em 1975. Arquivo Assis Lima
Por ser considerado um importante Monumento Nacional, o teatro recebeu tombamento federal ainda em 1964, mas somente foi inscrito no Livro do Tombo das Belas Artes em 1987 - Processo nº 650-T-62, Livro do Tombo das Belas-Artes, fl. 87, inscrição nº 479, data: 10.08.1987.

O corpo da sala de espetáculos é todo de aço e ferro fundido, com três pavimentos além do térreo, onde ficam a plateia, as frisas, camarotes, torrinhas, balcão e elegantes escadarias.  
Na parte superior da fachada, observamos a face alegre de Baco, deus grego do vinho e inventor do teatro, ladeado por duas musas e no andar superior, salão nobre ou foyer, dois anjinhos (Cupido e Psiqué), no frontal da porta principal, representando a união do corpo e da alma.

Postal Teatros Brasileiros de 06/12/1978.

Em seu interior, encontram-se raras pinturas do cearense Ramos Cotoco -pintou os nomes das obras de José de Alencar sobre as grades das frisas e as figuras femininas no teto da sala de espetáculos, do pernambucano Jacinto Matos - pintou os florões no forro da sala de espetáculos, da artista paraense Paula Barros - pintou os retratos de Carlos Gomes e de José de Alencar, além da representação das três artes – pintura, música e drama – na cúpula oval da sala de espetáculos, do carioca Rodolfo Amoedo, que foi aluno de Victor Meireles e professor de Portinari - pintou a moldura circular, acima do Pano de Boca, de João Vicente - pintou as imitações de mármore nas paredes da Boca de Cena e do cearense Gustavo Barroso, escritor e historiador, que auxiliou o arquiteto mineiro Herculano Ramos na pintura do 1º Pano de Boca, representando o encontro de Iracema com o Guerreiro Branco.

História em fotos:


Exposição da nova frota de carros Packard, do Posto Mazine, em 1939, em frente o TJA.

Desfile de um dos Packard.


O Teatro José de Alencar funciona de terça a sexta, das 9h às 12h e das 14h às 17h. Sábados e domingos, das 13h às 17h.

domingo, 24 de julho de 2016

Os espaços de lazer na Fortaleza de outrora - Parte II



Em 1910, Fortaleza contou, pela primeira vez, com uma grande casa de espetáculo, o Theatro José de Alencar. As negociações para a construção do Theatro José de Alencar foram mediadas em 1908 pela filial cearense da casa Boris Frères, de Paris. Aliás, esta casa costumava intermediar as negociações financeiras de toda a cidade com a França, inclusive as do Estado. Assim, o Theatro José de Alencar teve sua estrutura metálica fabricada na Escócia pela firma Walter MacFarlane & Co. Embora a administração da oligarquia Accioly, como era conhecida por estar desde 1896 no poder, já não gozasse de prestígio e popularidade, o teatro foi um ponto de convergência entre os partidários e opositores do
governo. Vinha corroborar os ideais de modernidade, dos bons costumes e representação de
poder como aponta Carlos Câmara no jornal A República, de 21 de janeiro de 1910:  


“Vai Fortaleza possuir um theatro, uma casa de espetáculos vasta e confortável, que não a
envergonhará aos olhos do estrangeiro. [...] O Theatro é um elemento de civilização e
progresso”
.


 

A inauguração do Theatro José de Alencar foi comentário de muitos impressos do período. Otacílio de Azevedo, por exemplo, que esteve no dia da inauguração, abordou em seu livro de memórias, as sensações daquela noite:

A primeira vez que transpus as portas do Teatro José de Alencar foi na noite de 17 de setembro de 1910 – era a sua inauguração artística, pela célebre Companhia de Operetas Leopoldo Fróes e Lucila Pérez. [...] Três meses antes, a 17 de junho, a casa de espetáculos havia sido entregue ao público da província pelo presidente Acióli, através de um longo discurso proferido por Júlio César da Fonseca, um dos maiores oradores da época. Realizou-se umconcerto pela Banda de Música do Corpo de Segurança do Estado, sob as
batutas dos maestros Luis Maris Smido e Henrique Jorge. [...] No centro da Praça, um enorme e belo coreto, onde a Banda da Polícia Militar executava todas as quintas-feiras belas partituras dentre as quais se destacava a valsa mais querida de todos – “A Norma”.



 Fortaleza e a era do cinema

Curiosamente, não foi encontrada nenhuma nota em jornal, revista ou livro de crônicas da época que anunciassem uma apresentação de música popular. Apareciam, como se observa na citação, apenas apresentações operísticas, de bandas militares ou de orquestras.
Os artistas, por mais que gostassem das diversões noturnas mais ecléticas, demonstravam
deslumbramento para com os divertimentos nos teatros. Ramos Cotôco e Paula Ramos, por exemplo, não só frequentavam ininterruptamente esses locais, como participaram da sua
construção estética, pintando o teto do palco principal e o do foyer.
O cinematógrafo foi outro espaço de entretenimento que “abrigou” um público bastante heterogêneo, sendo, muitas vezes, alvo da crítica das elites. O primeiro cinematógrafo foi instalado em Fortaleza no ano de 1907, por Vitor de Maio, o mesmo que inaugurou no Rio de Janeiro em 1884 o primeiro cinema brasileiro. Ele foi montado na rua Cel. Guilherme Rocha, nos fundos da Maison Art-Nouveau. Em 1909, outros seguiram os seus passos. Henrique Mesiano, que inaugurou o cinema Rio Branco, e Júlio Pinto, que fundou o Cassino Cearense.


Cinema Rio Branco na rua Barão do Rio Branco. A placa do cinema foi percebida pelo pesquisador Nirez -  Fortaleza e a era do cinema

 Fortaleza e a era do cinema

As instalações do Cassino Cearense eram mais modestas se comparadas às do Cinema Rio Branco. No começo, o Cassino Cearense possuía orquestra, na sala de espera inclusive, mas depois passou a ter apenas uma pianista na sala de projeções. Essa presença de instrumentistas e/ou cantores no cinema se explica pelo fato de que os filmes, nesse período, eram mudos. Apesar da presença de camadas abastadas nos cinemas, no início das instalações das salas, os
indivíduos iam apenas ver esses filmes pelo dever social, ou seja, por acharem que essa
prática simbolizava um elo com a modernidade. Havia dificuldade desses cinemas sobreviverem na capital devido à falta de espectadores.


 Majestic - Fortaleza e a era do cinema


Em 1917, um cinema-teatro foi inaugurado em Fortaleza. O Majestic Palace foi descrito pelo memorialista Otacílio de Azevedo como a maior expressão do fino gosto que atraía a fina flor da sociedade. Entre essa “fina flor”, encontravam-se no dia da inauguração seus amigos boêmios Ramos Cotôco, José de Paula Ramos e Antônio Rodrigues. A presença desses indivíduos ligados à boemia na casa de espetáculo é um alerta sobre a importância de se conhecer a fundo as estratégias, sobretudo de Ramos Cotôco, de mediar e condensar suas
experiências nas modinhas que produzia. Ainda, segundo Azevedo, a estreia dos espetáculos
foi feita por músicos profissionais, um deles vindo de fora, como se pode observar abaixo:
 

Da segunda porta do belíssimo cenário, surge Fátima Míris, vestida como japonesa e, após entrar rapidamente na primeira porta, voltou a sair, desta vez na forma de um pastor. Era inacreditável tudo aquilo. [...] Ao levantar-se o pano, no segundo intervalo, a violinista deslumbrantemente trajada apareceu, imitando um dueto com tamanha habilidade e perfeição que o maestro Henrique Jorge, subindo ao palco, ajoelhou-se e beijou-se as mãos.
[...] ficaram todos boquiabertos e assombrados diante da excelsa intérprete de Paganini. [...] Ao cair o pano, em meio à maior chuva de aplausos, gritavam a todos a uma só voz: “bis, bis”, ao que ela entendeu.


Os clubes também contribuíram para a institucionalização das diversões. No fim do século XIX, eles foram tomando o lugar dos bailes que ocorriam nos sobrados e palacetes da capital. A narrativa de Raimundo Girão adverte que, aos olhos dos estrangeiros, aos poucos os clubes se tornaram vulgarizados. Fortaleza foi denominada por eles como “A cidade dos clubes”. No
entanto, acredita-se que esse comentário foi uma forma pejorativa de encarar os habitantes
como indivíduos dispostos ao gosto por “coisas efêmeras”.




O Clube Cearense, que surgiu no ano de 1867, e estava localizado num sobrado residencial da Rua Senador Pompeu, de propriedade de D. Manuela Vieira, foi, segundo Girão, um clube bastante seleto, que comportava os indivíduos mais “ilustres” da sociedade.
Nesse tempo, era predominante a atuação de estrangeiros na Capital, notadamente ingleses,
franceses e portugueses, afeitos às “exigências” das grandes cidades europeias e, por essa
razão, frequentadores assíduos do clube. Essa seleção social fez surgir uma reação de grupos
intelectuais que se sentiam agredidos por não terem a entrada permitida no clube, surgindo
assim, no ano de 1880, o Clube Iracema. Essa agremiação era composta, em sua maioria, por moços do comércio, um número pequeno de estrangeiros, empregados públicos. Esses indivíduos que pertenciam à agremiação do Clube Iracema, embora tivessem sofrido preconceito de classe, não deixaram de fazer o mesmo recebendo apenas “todos os dignos da cadeia social da cidade”.  Um dos comentários feitos por Girão em defesa do Clube Cearense é revelador:


Não há aristocracia dos bailes do Clube Cearense, nem essa grandeza de nobiliarquia, nem as deslumbrantes toilettes do clássico noblesse oblige, mas em compensação há vida, mocidade e prazer, que fazem do baile, não um agrupamento convencional de etiquetas e exposição de tipo e trajes, mas uma assembléia jovial, familiar, alegre, buliçosa, ativa, forte e robusta, que
enche os pulmões de prazer e desenvolve-se, marcha, evolui, por meio dessa higiene moral que faz das sociedades o fator da civilização, do progresso e da grandeza da humanidade.


 
As confraternizações no Clube Cearense eram pensadas para ter funções além da de entreter. Percebemos que as diversões, como os concertos, recitais e sessões literárias, tinham a finalidade de educar e, ao mesmo tempo, moralizar os espectadores. A família nuclear deveria ser mantida a todo custo, ou, do contrário, não se era visto com “bons olhos” pelos outros pertencentes à agremiação. Quando o Clube Cearense fechou suas portas, coube ao Clube Iracema manter esses ideais de valorização da família e dos “bons costumes”, com a finalidade de “civilizar” os habitantes da capital. O Clube Iracema aumentou a sua fama após inúmeras apresentações de companhias internacionais, entre elas as italianas, além da presença do compositor Alberto Nepomuceno, que, por ter completado seus estudos musicais na Europa e possuir certo renome, passou a ser um símbolo de indivíduo civilizado:

Ficou afamado, tido e havido com o primeiro grande concerto presenciado pelos fortalezenses aquele tão bem descrito pelo cronista Pery e no qual (1884) tomaram parte amadores prata-de-casa e artistas da Companhia Lírico-Cômica Italiana, de Luigi Milone, que representava no Teatro São Luis: Salões literalmente cheios, uma miríade de olhos divinos constelando um  jardim de rosas sob as cintilações dos candelabros num giorno fantástico, ideal, celeste. [...] O jovem maestro Ciro Ciarlini e o grande orquestrante Joaquim Franco ao piano arrebataram, como arrebataram com as suas gargantas privilegiadas a prima-dona Sidônia Springer, na Serenata de Braga, e os barítonos Cesare Baracchi e Dominici, cantando este a Balo in maschera, romanza de Verdi. Dos nossos, deram desempenho maravilhoso Celina Rolim e a irmã Branca Rolim, “as jóias queridas do calor de Iracema”, as senhoras Maria Abreu Albano e Maria Amélia Teófilo, e o diletante José Marçal, grande vocações artísticas que era. [...]E o renome do Clube Iracema, nos domínios da ate, cresceu com o fulgor que lhe vieram dar, com as suas admiráveis interpretações, virtuosos do valor de Alberto Nepomuceno, Henrique Jorge, Moreira Sá, Frederico do Nascimento, Galiani Vincenzo Cernicchero, Artur Napoleão, Adrés Dalmau, Ladário Teixeira [...]

 
Com o passar do tempo, outras agremiações nasceram como, por exemplo, A Fênix Caixeiral (1894), o Reform Club (1886), entre outras. Algumas dessas agremiações eram modestas e se fixaram em locais distantes da área central da cidade. Outro grande clube em Fortaleza, que só abriu em 1913, levou o nome de Clube dos Diários por seus fundadores
João Garcia Árêas, Francisco da Costa Freire, Martiniano Silva, José Mendonça Nogueira, João Mar-Do-well Guerreiro Lopes, César Cals de Oliveira e Henrique Jorge.




No fim do século XIX, outros pontos de encontro foram instalados na cidade de Fortaleza. Os cafés afrancesados e os bares eram frequentados por um público bem distinto, entre eles estavam presentes intelectuais, boêmios, caixeiros, políticos, estudantes, entre outros. Estes locais aguçavam debates fervorosos sobre assuntos do dia a dia, críticas políticas ou, até mesmo, mexericos sociais. Os cafés locais eram inspirados nos de Paris. Café de La Paix, o Café de La Regence eram representações do gáudio e glamour e, por isso, serviram de
modelo para a construção dos quatro cafés instalados na Praça do Ferreira: O Café Iracema, Café Elegante, Café do Comércio e Café Java, este último, lugar de encontro dos intelectuais da Padaria Espiritual. Seu proprietário era conhecido como Mané Coco, um homem espirituoso, que adorava frequentar circos e teatros.


O Café Riche teve vida curta mais intensa. Curiosamente intensa, porque essa intensidade não significava movimento comercial de receita para os proprietários. Funcionava na esquina mais famosa da cidade, em plena Praça do Ferreira, na Rua Guilherme Rocha, antes Municipal e 24 de Janeiro. Na hora do almoço, a parte do Café Riche que era bar enchia-se dos fregueses que trabalhavam no comércio. Já à tarde, os frequentadores eram mais estudantes, artistas e literários. Os cafés eram espaços de sociabilidade mais democráticos do
que os clubes e os salões da elite, consequência da não necessidade de consumir para sentar
nas cadeiras do estabelecimento.



As discussões nesses cafés geravam frutos, pois, segundo Azevedo, muitas agremiações, revistas e jornais foram fundados nas rodas de conversas nos bares e cafés da cidade. O Café Java, por exemplo, era sede de discussões políticas fervorosas. Entre seus frequentadores estavam Amâncio Cavalcante, Leonardo Mota, Eurico Pinto, Gérson Faria, William Peter Bernard, Ramos Cotôco, Chamarion, Carlos Severo, Gilberto Câmara, Quintino Cunha, o Rocinha, da farmácia, o Pilombeta, muitos deles boêmios.
Enfim, percebe-se que a circulação de artistas e uma parcela menor de intelectuais nos variados espaços da cidade foi imprescindível na tentativa de diminuir o controle sobre as diversões públicas. O “lugar da música” foi relativamente controlado por indivíduos preocupados com o progresso da capital, pois havia o lugar para tocar as fanfarras militares
(em coretos de praças), o lugar das orquestras (em teatros e clubes), o lugar dos pianistas (em
cinemas e bailes suntuosos), entre outros. Porém, a improvisação, marca de grupos que se esforçavam para manter vivas suas manifestações culturais, resignificavam dia a dia o “lugar
da música”, fazendo-as em bodegas, quiosques, residências e, principalmente, no meio da rua.


Alguns escritores advertiram que os lugares de música podem ser bem inusitados e que as pessoas podem transitá-los de acordo com suas necessidades. Oliveira Paiva em seu romance de ficção A afilhada, por exemplo, percebe que, na sociedade de que fazia parte,
havia, embora em número muito reduzido, homens que garantiam a circulação das práticas
musicais. Embora fosse um personagem criado pelo autor no século XIX, Coutinho era fruto
da sociedade fortalezense, que serviu como modelo para o romance:


Desta vez ia falar o alferes Coutinho, quartel-mestre do batalhão, um moreno, de costeletas, cabelo penteado em pastilhas, certo ar arrogante de pelintra acostumado a todas as festas, desde os sambas do Outeiro aos bailes do Clube Iracema, magricela, olhos cavados. Nas horas d’ ócio dava-se ao luxo de fabricar sonetos do gênero piegas dos últimos trovadores de salão.
[...] Arrastava ao piano as valsas em moda e dizia-se exímio tocador de flauta. [...] Convidado a toda parte, não perdia ocasião de exibir-se na poesia ou na música. Tinha fama de primeiro recitador do Ceará. Ninguém como ele sabia marcar uma quadrilha, todo enfezado, sempre de lenço na mão, metido invariavelmente na sua farda de alferes com um colete branco.





Crédito: Ana Luiza Rios Martins - Entre o piano e o violão: A modinha e a cultura popular em Fortaleza (1888-1920). /Biblioteca Nacional 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A arquitetura do ferro em Fortaleza (Parte II)




Os séculos XIX e XX foram marcantes no quesito da exportação de matérias-primas e a importação de produtos industrializados que chegavam introduzindo novas práticas sociais e e a introdução de novos valores culturais, que iriam favorecer as reformas urbanas e a inserção da arquitetura do ferro na cidade.

Por sua produção rural, Fortaleza passou a deter, um movimentado porto exportador-importador. Diante dessa expansão econômica e urbana da cidade, os poderes públicos, as elites enriquecidas e os setores intelectuais realizaram um conjunto de reformas urbanas com a intenção de alinhar a cidade aos códigos de civilização, usando como referência modelos materiais e estéticos dos grandes centros urbanos europeus.

Fortaleza teve seu desenvolvimento atrasado pelo tardio povoamento do Ceará, iniciado apenas no começo do século XVIII, principalmente por ser dependente da capitania de Pernambuco e impossibilitada desta forma de efetivar relações comerciais diretamente com a Corte e outros países europeus; e, também, pelo modelo de ocupação do território, que se deu do sertão para o litoral, mesmo que com o passar do tempo esse litoral seja fundamental para o desenvolvimento da capital.

Em 1726, Dom João V resolveu conceder o Forte com o título de Vila. Fortaleza passa a usar esse título, mas pouco muda seu aspecto de abandono e pobreza em que estava até então, quase ilhada no “montão de areia”. A primeira Planta da Vila de Fortaleza, de 1726, desenhada pelo Capitão-Mor Manuel Francês, mostra bem essa realidade. (Ver primeira foto da postagem).

Entretanto, o ano de 1799 seria para a pequena “Vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção”, muito favorável. Enfim, por ordens reais, a capitania do Ceará se separa definitivamente de Pernambuco e cria-se, assim, a possibilidade de comércio direto com Lisboa. O porto de Fortaleza, um simples ancoradouro, encontrará finalmente uma função específica. 
No decorrer do século XIX, se dão as subsequentes ações transformadoras no espaço da cidade de Fortaleza.
Só a partir do segundo reinado, quando os presidentes de província passam a ser os agentes do poder central, é que a cidade de Fortaleza vai melhorar seus indicadores econômicos, principalmente em relação a Aracati. O limitado volume da produção e do mercado impediriam a possibilidade de sustentação das duas cidades e justificariam a disputa entre Aracati e Fortaleza. Porém, essa concorrência foi vencida por Fortaleza, por ser capital da província.



Um dos primeiros a relatar tais acontecimentos foi o viajante inglês Henry Koster, entre dezembro de 1810 e janeiro de 1811, quando visitou a cidade então vila, com não mais que cinco ruas e fez a seguinte descrição:

[...] edificada sobre terra arenosa, em formato quadrangular com quatro ruas, partindo da praça e mais outra, bem longa, do lado norte desse quadrado, correndo paralelamente, mas sem conexão. As casas têm apenas o pavimento térreo. Mas n‟algumas residências, há uma calçada de tijolos deante. Três igrejas, o palacio do governador, a Casa da Câmara e prisão, Alfândega e Tesouraria (KOSTER41, 1942: 165 apud CAMPOS, 1988: 60).

Precária formação urbana tem seus dias contados, quando o Senado da Câmara, a 21 de novembro de 1812, pleiteia a autorização do Governador para os procedimentos de elaboração de planta que oriente a edificação da cidade. Esta necessidade de racionalização aparece no tecido urbano a partir da chegada e influência do engenheiro Antônio José da Silva Paulet em 1812. Chegou como ajudante de ordens do 4º governador da Capitania do Ceará, o Coronel Manuel Ignácio de Sampaio, e foi o último engenheiro-militar enviado para a Capitania. Veio com o objetivo de realizar levantamentos cartográficos do território, como também implementar obras arquitetônicas e intervenções urbanísticas. As realizações materiais da administração do Governador Sampaio ficou marcada por obras de vulto, como a nova Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, o edifício do mercado da vila e a abertura de ruas retas, com cruzamento em xadrez.

Fortaleza foi descrita da seguinte forma, pelo engenheiro-militar Silva Paulet em 1816:

Esta villa é a capital da capitania; assento do governo, com um batalhão de tropas regulares, um juiz de fora que é auditor da tropa e juiz de alfândega. Há uma caza de camara arruinada: não tem cadeia, e servem-se as autoridades civis de uma cadeia militar; o que dá motivo a uma infinidade de contradições e etiquetas, que se não podem emendar, em muito detrimento da expedição das dependencias criminaes. A villa é pobre, seo comercio de pouco vulto, ainda que o porto é soffrivel, apezar de ser uma enseada, mas como só as immediações do termo do Aquiraz, e parte da villa de Monte-mór o Novo se surtem da Fortaleza, o commercio é muito menor do que o do Aracati. Não há uma só caza de sobrado, e as terreas são muito inferiores. O sólo é de areia solta, o tijolo, cal e madeiras são caros, e tudo concorre para ser mui despendiosa a edificação. (PAULET, 1898: 16).

Respeitando o traçado original que encontrou, Silva Paulet sobrepôs uma nova malha, em xadrez, ajustável ao terreno quase plano, onde a cidade tinha se desenvolvido

No período imperial, em 17 de março de 1823, Dom Pedro I elevou a Vila de Fortaleza à categoria de Cidade da Fortaleza de Nova Bragança, denominação que pouco agradou e logo foi renomeada para Cidade da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Porém, um pouco antes desses acontecimento, em 1820, Paulet deixou o Ceará. Nessa situação, o arruador e profissional da municipalidade, Antônio Simões Ferreira de Farias, que era auxiliar de Paulet, desde 1812, nas obras de edificação e nos trabalhos de implantação do novo plano de desenho ortogonal aplicado à então vila, deu continuidade ao trabalho do engenheiro.

Na década de 1860, o suíço Luís Agassiz, que chefiava a missão científica Thayer Expedition, acompanhado de sua esposa Elizabeth Cary Agassiz e de um grupo de naturalistas, ao visitar Fortaleza, descreveu a capital cearense desta forma:

Gostei do aspecto da cidade do Ceará. Agradaram-me as ruas largas, limpas, bem calçadas, ostentando toda sorte de cores, pois as casas que as ladeiam são pintadas dos mais variados tons. Aos domingos e dias de festa, todas as sacadas se enchem de moças com alegres toaletes, e os grupos masculinos enchem as calçadas, conversando e fumando. Ceará não tem esse ar triste, sonolento, de muitas cidades brasileiras; sente-se aqui movimento, vida e prosperidade na cidade (AGASSIZ, 2000: 408).

Fortaleza começava a apresentar nesse período um certo progresso no cotidiano social, e em termos de mudanças nos aspectos construtivos das edificações, como tão bem observou Agassiz em sua passagem pela cidade:

As casas baixas, proletárias, de beira e bica, paredes de taipa e, também, as mais presunçosas, de beira e sub-beira, portas lisas e sem bandeirolas nem persianas, aos poucos eram substituídas por outras mais elegantes e burguesas, de cimalhas e cornijas, com fachadas artísticas, de frontões ogivais, varandas ou balcões de ferro, quais as sacadas onde postavam as moiçolas que Agassiz viu em elegantes tualetes. (GIRÃO, 1979: 106).

A partir de 1860, intensifica-se o cultivo do algodão em toda a província e em zonas não muito distantes da capital, abrindo oportunidades de um comércio direto com a Inglaterra estimulado, principalmente, pela retração dos Estados Unidos, um de seus principais fornecedores de algodão, que estava em guerra pela independência. O crescimento da exportação da produção algodoeira para o mercado externo contribuiu para tornar Fortaleza o principal entreposto comercial do Ceará.
A cidade teve demasiadas transformações a partir dos anos 1870. Entretanto, com a preocupação do poder público de esquadrinhar a malha urbana de Fortaleza, com o objetivo de sistematizar a expansão da cidade através do alinhamento de suas ruas e da abertura de novas avenidas, a Câmara decide solicitar a contribuição profissional de Adolfo Herbster, para elaborar e implementar um novo plano urbanístico. Esse momento seria o marco inicial da modernização urbana em Fortaleza.
Adolfo Herbster  já era contratado como engenheiro e diretor de obras da Província, desde 1855, cedido pelo governo de Pernambuco ao Ceará.
Na época da chegada de Herbster ao Ceará, Fortaleza enfrentava dois fatores negativos que impediam a expansão física da cidade; dificuldades de obtenção de material de construção, como tijolos e cal, a implantação da cidade em solo arenoso, além das péssimas condições das atividades portuárias e do abastecimento de água.



A Planta Exata da Capital do Ceará de 1859, proposta por Adolfo Herbster, deu origem ao sistema que orientou o desenvolvimento do bairro Aldeota, no lado leste da cidade. Essa planta por ser bastante detalhada, foi um retrato da cidade.
Herbster fez incluir legendas que esclarecem as denominações dos logradouros e a localização de todos os edifícios públicos, civis, religiosos e militares. Estão devidamente assinalados repartições públicas, escolas, igrejas, quartéis, a cadeia, o Cemitério de São Casemiro e o pequeno anexo dos ingleses, riachos, pontilhões, açudes, cacimbas (poços) das praças, coqueirais, “áreas”, “comoros” (dunas). Indica por meio de convenções gráficas os modos de ocupação e o relevo do solo, apontando os trechos de continuidade predial, as edificações isoladas, praças, largos e hortas, campos cultivados, baldios, zonas periféricas onde se espalhavam em vasto número as casas de palha (“choupanas”).



Fortaleza naquela época, não passava de um pequeno quadrilátero já arruado, justaposto à área ocupada pela vila no começo do século, ainda acomodada ao riacho Pajeú.
A pavimentação nem sempre acompanhou a expansão urbana, permanecendo até as primeiras décadas do século XX, as pontas de ruas, conhecidas por “areias” (Que representavam os bairros da periferia de Fortaleza), expressão de forte diminuição social.
Com a inauguração da estrada de ferro em 1873, o transporte do algodão e de pessoas para Fortaleza foi agilizado, consolidando a hegemonia econômica da cidade, encurtando as distâncias e estreitando a dependência do interior com a capital. O trem, um dos principais produtos do avanço tecnológico do século XIX, acentuou ainda mais a positividade dos efeitos sociais da noção de “progresso”.

A cidade nasceu voltada para o sertão, contradizendo sua natureza litorânea.
Nesse período a ocupação do litoral da cidade se limitava ao forte, uma vila de pescadores nos arredores da Prainha e um trapiche, cujo maior adensamento das construções estava um pouco distante da zona costeira, resultando num litoral quase desabitado.
Até mesmo aqueles imóveis localizados à beira-mar faziam referência à presença do homem do sertão e seus utensílios.
Nesse entendimento, afirma o escritor Eduardo Campos (Livro Rural e Urbana. Fortaleza, 1988) :

Figuram aí, com nomenclatura antiga e saborosa, ruas e travessas referendadas por suas legítimas origens populares, quais as travessas das Hortas, das Flores, do Cajueiro, do Pocinho, da Cacimba, da Bica, em que se evidencia mais uma vez a formalização de nossos antecedentes rurais, e, indisfarçável, o entrelaçamento das relações do “sertão” com a cidade, e não com o mar, não obstante a proximidade imediata deste, responsável, como é apregoado, pela salubridade da população.              

As zonas de praia na capital cearense caracterizavam-se nesse período, principalmente, por duas funções que contribuíram para sua desvalorização, que eram o escoamento dos esgotos e as atividades da incipiente zona portuária. Praticamente por todo o período de crescimento da cidade no século XIX, a zona costeira está quase sempre à margem nos planos urbanísticos de ordenamento do traçado urbano, como se viu até então. Esta zona passa então a ter sua ocupação irregular pelos migrantes foragidos das constantes secas do sertão cearense na segunda metade do século XIX.

Apesar do visível crescimento, Fortaleza ainda não possuía um porto adequado para exportar seus produtos, entre eles, o algodão.

No final do século XIX, o engenheiro inglês John Hawkshaw, elaborou um relatório que trazia a então nova estrutura portuária de Fortaleza com base no Decreto Nº 8.943 de 12 de maio de 1883. O projeto do novo conjunto portuário não foi aprovado, sendo construído apenas o prédio da Alfândega. A execução ficou a cargo da Sociedade Inglesa Ceará Harbour Corporation Ltda (Empresa Concessionária dos Serviços do Porto de Fortaleza) sob direção dos engenheiros Tobias Lauriano Figueira de Mello e Ricardo Lange, sendo construtora a Firma Punchard M. Taggart Muntz & Companhia representada por E. Jackson & P.O. Meara, sendo o engenheiro chefe George Barclay Bruce. O local escolhido era um terreno baldio e cheio de árvores.

Coube ao engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva estudar um novo plano capaz de facilitar o movimento de pessoas e mercadorias no porto. O resultado foi apenas a construção de um trapiche em frente ao novo edifício da Alfândega. Era um viaduto com estrutura de ferro e piso de madeira, a chamada ponte metálica, cuja construção foi iniciada em 1902 e entregue somente em 1906.




Segundo Raimundo Girão, a ponte metálica era dotada de escada móvel para descida e subida de passageiros, não oferecendo por isso a melhor segurança. A carga e descarga de mercadorias era feita por meio de guindastes. Os navios ficavam ao longo, e o percurso até a ponte e vice-versa era efetuado por lanchas, alvarengas e botes.

A cidade crescia, experimentando novos regulamentos em favor da ordem urbanística. As normas enquadravam os habitantes, que muitas vezes não atentavam para as modificações da convivência social imposta pelo progresso da urbe. Assistir o crescimento do casario, a abertura e prolongamento de novas ruas, e cobrando melhor apresentação do indivíduo, sua adequação aos tempos de renovação ou aperfeiçoamento de hábitos. 
Hábitos e costumes marcadamente provincianos, em que se inseria o comportamento social naquela época, decorrentes da liberdade de viver no campo, os chamados “matutos”, gostavam de andar muito à vontade.
Fortaleza, como Capital, era referência, entre as cidades do Ceará, do “modelo hegemônico de bem-estar e estar bem no mundo”, unificado sob o capitalismo, que a Europa do século XIX impôs como modelo e parâmetro de civilização.

O primeiro estabelecimento de negócios estrangeiros foi fundado na cidade em 1811, a fim de manter intercâmbio direto com a Europa. O irlandês William Wara iniciou essa fase de influência britânica no desenvolvimento socioeconômico de Fortaleza. Lojas e armazéns além de ostentarem nomes, tabuletas e fachadas, gravados em língua inglesa, vendiam o melhor que a cidade usava, comia e vestia, tudo vindo das Ilhas Britânicas, segundo Raimundo Girão.

Um grande número de ingleses, franceses e portugueses tiveram atuação no comércio da Capital; mantinham lojas e empórios, habituados às exigências das grandes cidades europeias e, por essa razão, polidos, cavalheiros, num meio que apenas deixava os costumes sociais mais elementares. Exerciam, na sociedade, as melhores relações de ordem mundana, concorrendo para melhorar os costumes e a civilidade local.


As lojas, com suas vitrines, tinham um atraente acervo de artigos europeus constituídos de tecidos, sapatos, perfumes, chapéus, bijuterias, conservas, bebidas, maquinarias, entre outros. Além de vender objetos, roupas, quinquilharias de luxo, os desejos mundanos importados de Paris, as lojas ostentavam títulos em francês nas suas fachadas, como: Rendez-vous de Dames, Au Phare de La Bastille, Paris des Dames, Paris n’América, Bon Marché, Maison Moderne, Louvre (a mais luxuosa).
O mesmo ocorria com hotéis e restaurantes, como: Hotel de France (o melhor da cidade durante muitos anos) Restaurant Entaminet Europeu, Café Riche, Confeitaria Maison Art Nouveau, Notre Dame de Paris, além das Farmácias Francesa e Pasteur.


Nessa lógica, o culto do afrancesamento encontrou um terreno fértil na capital, entre os grupos citadinos ávidos por novidades importadas, se traduzindo de várias formas e sentidos.
Em 1908, a Casa Boris Frères & Cia. publicou o Álbum de Vistas do Ceará, 1908, editado e impresso na cidade de Nice, na França, por Berger et Humbolt Helmlinger, com fotografias de 1902 a 1907. Confeccionado em papel nobre, trazia 160 imagens de tudo que representava o aformoseamento e o progresso de Fortaleza, e também de algumas regiões do Ceará que estavam em processo de desenvolvimento, no início do século XX.
Significava, formalmente, uma homenagem à Fortaleza, em reconhecimento ao seu desenvolvimento e a sua formosura. Esse álbum de fotografias com imagens da Capital e de regiões do interior do Ceará, circulou pela cidade, para o entusiasmo dos agentes locais da modernização urbana.

No início do século XX, a cidade continuou a passar por transformações sócio-urbanas que intensificaram sua condição de principal cidade do Estado, posição hegemônica alcançada no final do século XIX. As autoridades, conforme o ideário de “progresso e civilização” da belle époque europeia, voltavam a administração municipal para o “aformoseamento e higienização” de ruas e praças, bem como o controle das crescentes e miseráveis camadas populares.

Fonte: Ofipro

Na atuação producente do administrador municipal Guilherme Rocha, que desde 1892 exercia o cargo de Intendente, foi inaugurado em 1897 o Mercado da Carne, uma das vaidades da Capital. Importado da França, para a venda de carnes e peixes, melhorando o sistema primitivista com que se efetuava aquele comércio. Em 1902, inaugurou-se na Praça do Ferreira, o belo jardim 7 de Setembro e, no ano seguinte, a Praça Marquês do Herval. Além desses logradouros, a Praça da Sé também sofreu uma intervenção estética, recebendo ornamentação semelhante ao Passeio Público.

Até então, a cidade contara apenas com um único logradouro urbanizado, que era o Passeio Público. Em ambas as praças, a par dos canteiros, cheios de flores, introduz cópias de originais de estatuária grega pertencentes ao acervo do Louvre. No meio dos jardins da Praça Marquês do Herval, Guilherme Rocha ergue também um pavilhão destinado à prática de patinação, às demonstrações de ginástica infantil e aos concertos do Batalhão de Segurança.


Também a construção de um teatro oficial em Fortaleza figurava como intenso desejo desde o início do século XIX. Entretanto, só foi concretizado em 1910, com a inauguração do Teatro José de Alencar, uma das últimas obras do governo oligárquico de Nogueira Accioly. Importado da Europa, o teatro com estrutura de ferro pré-fabricada, fornecida pela empresa escocesa Walter MacFarlane & Co., de Glasgow, chegou em Fortaleza em 1908, a bordo de um navio inglês, com negociação feita pela Casa Boris Frères. A arquitetura do ferro já era conhecida e admirada, significando para os adeptos locais um símbolo da afirmação civilizatória.

Catálogo MacFarlane’s Volume I

Mesmo antes da construção do Teatro José de Alencar, esta preferência se explicava, não só pela praticidade, mas sim pelo que representava: as maiores conquistas tecnológicas da construção civil, à época, como também por seu aspecto simbólico. Lembrava as grandes cidades europeias, com as quais a próspera classe de comerciantes importadores-exportadores cearenses mantinham contatos cada vez mais próximos, aspirando sonhos de civilização e riqueza.

Catálogo MacFarlane’s Volume I


Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Para atender a esses desejos de modernidade, nada mais natural do que transferir para o Brasil a arquitetura feita na Europa, através do emprego das estruturas metálicas importadas e pré-fabricadas, constituindo assim um prolongamento da europeização da vida brasileira, já que se tratava de um produto original, elaborado por matrizes culturais europeias, símbolos concretos de demonstração de poder de uma elite urbana em ascensão. 

1- Catálogo MacFarlane’s Volume I
2- Foto de Maria Claudia Vidal Lima Silva - 2013

Embora as edificações pré-fabricadas em ferro na Europa não possam ser consideradas competências de uma cultura brasileira, porém podem ser compreendidas por meio de uma dependência de uma cultura importada que expressava um símbolo de civilização e progresso. A inserção da arquitetura com seus exteriores significativos e os seus interiores direcionados à exibição dos novos hábitos sociais, objetivavam também integrar a cidade ao modelo civilizador ditado pelas nações europeias ditas mais desenvolvidas.


Leia também a Parte I



Crédito: Uma Revolução no tempo das trocas: Arquitetura do ferro na cidade de Fortaleza (1860-1910) - Maria Claudia Vidal Lima Silva

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