Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga : Tipos populares
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Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.
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quinta-feira, 16 de março de 2017

Raimundo Varão - Por Otacílio de Azevedo



O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado, a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol, com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês... 
Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica. 
Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas, olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo. Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que, nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los com seu nome, para não lhes macular a alvura. 
No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...


Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava! 
Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que "seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela primeira vez, se apaixonara! 


Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc. 
Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram iguaizinhos aos meus! 

Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso, porque seu único alimento era bolachinhas Jacob* e cerveja... 

Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom, meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos... 


Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle Ibis": 


Quando a vejo passar, franzina e leve, 
mais delicada e frágil que as verbenas, 
penso que aquele traje ocultar deve 
a rainha grácil das açucenas. 

Lírios, pérolas, lânguidas falenas, 
rubis, Papoulas, flóculos de neve,
vêm nos trazer um fraco esboço apenas 
do conjunto ideal da boca breve... 


Dos seus olhos, mais puros que as estrelas, 
a luz auroreal nos vêm falando 
de cousas que é impossível concebê-las... 

E quando passa, a rir, entre cortejos, 
parece uma ilusão que vai boiando 
num oceano de sonhos e desejos! 

Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas decassílabos: 


UM SONETO D' AMOR 

Anjo, mulher, demônio a quem venero, 
sombra que amaldiçoo e que bendigo, 
luz de meus olhos, infernal perigo, 
causa de meu eterno desespero! 

Se procuro esquecer-te é que mais quero 
dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo, 
e concentrando as lágrimas comigo 
as minhas próprias carnes dilacero... 

Do meu profundo amor sempre a falar-te 
encontrarás o espectro solitário 
disperso, a soluçar por toda a parte! 

E se em teu peito a compaixão não medra, 
eu irei pela senda do calvário 
arrancando um soluço a cada pedra! 

ALUCINADO 

Ardendo em chamas de infernal cratera, 
ao ver-te o corpo escultural, divino, 
sinto rugir-me n'alma uma pantera 
que ladra contra Deus e o meu destino... 

Tu és a flor em plena primavera 
eu sou o mendigo, o verme pequenino... 
Deixa rolar no abismo da quimera 
a paixão deste amor, que não domino. 

Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia, 
quando houveres baixado à campa fria, 
na febre dos desejos indomados, 

irei partindo o mármore das lousas,
visitar o mistério em que repousas
para beijar-te... os ossas descarnados!

Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:

O poeta é como a águia, anseia o infinito,
o olhar na luz da ideia eternamente fito,
desdenha o mundo vil e a existência ilusória,

e voa e cai e morre olhando o sol da glória



Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrí­nio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram... 

Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez houvesse desaparecido para todo o sempre. 
Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos, foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte? "Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta de A Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen, esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias. 



Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás, segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou . De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de sua única e velha calça, em petição de miséria... 

Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas haviam desaparecido! 

Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo, ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem, mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi, aterrorizado, quando criança. 
No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade, ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea, mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões, diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos e lhe beijar o pó das sandálias... 
Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado pela Mademoiselle Ibis: 


VISÃO NOTURNA 

Espairecendo incauta e descuidada 
à fraca luz da lâmpada indecisa, 
a cada passo um raio de alvorada 
ilumina o lugar onde ela pisa... 

Na mórbida indolência que desliza 
a sua forma clássica, esmerada, 
lembra um cisne de luar que se eteriza 
no mar de luz da esfera constelada. 

Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias 
fazendo recordar dos grandes sábios 
as cavernosas órbitas sombrias...

E as suas frases dúlcidas, singelas, 
cada palavra que lhe sai dos lábios, 
vou transcrevendo em sílabas de estrelas! 

Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga, quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha grande valor. 
Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta, em chorosa surdina... 
Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou nossa cidade: 


FORTALEZA 

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...



Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.

Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento po­ético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adá­gios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça1992, uma memória histórica de nossa cidade.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra




* De acordo com minha amiga Isabel Pires, que foi quem conseguiu a foto da caixa das bolachas Jacob, a marca era Irlandesa e curiosamente,  vendida nas mercearias da antiga Fortaleza.


Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Raimundo Varão - Figura excêntrica que fez parte do cotidiano de Fortaleza



Em Fortaleza, durante os anos de 1911 e 1915, viveu um homem estranho, que ninguém sabia de onde tinha vindo, se do Rio de Janeiro, Piauí ou São Paulo*. De acordo com as beatas da época, que juravam de mãos postas, aquela criatura só podia ter emergido dos quintos dos Infernos. O poeta Otacílio de Azevedono seu livro “Fortaleza Descalça”, assim o descreveu: “… era alto, magérrimo, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos e profundos com olheiras cor de azinhavre. (…) Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (…) Um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas histórias de Trancoso”
Esse ser estranho, era ninguém mais, ninguém menos, que Raimundo Varão, tido como o mais excêntrico dos artistas cearenses. Era poeta e desenhista, tendo trabalhado no estúdio de fotografia do dinamarquês Niels Olsen.
Os cronistas do início do século XX, contam que o poeta não era nenhum pouco higiênico, mas lavava as mãos sempre que pegava em um livro. E que mesmo andando sujo e mal asseado, seus livros eram todos impecáveis, não possuindo um risco sequer, muito menos uma mancha em seu interior ou capa. 

A pensão onde o poeta Raimundo Varão morava, ficava na Rua Formosa, atual Barão do Rio Branco.

De acordo com o contista, cronista e poeta bissexto Newton Silva, Raimundo Varão parece que não se importava com a alcunha de filho do diabo ou que era o próprio diabo em pessoa, visto que ele próprio contribuía para aumentar os mexericos e falatórios em torno de si. E os boatos aumentavam a cada dia. Ateu, só usava roupas pretas, era extremamente pálido como um vampiro, não tomava banho, praticamente não comia nada além de cerveja com bolachas, tinha um odor fétido de defunto e de acordo com a "boca miúda", ainda criava na pensão em que morava, um sapo amarelo com o qual conversava e trocava carícias. Tudo isso, era sem dúvida, ótimos motivos para as bocas ávidas de histórias mirabolantes dos fofoqueiros daquela época. Certa feita, depois de uma interminável noite de bebedeira, o enigmático poeta terminou a farra na Praia Formosa (hoje Praia de Iracema), em meio a uma tempestade com raios e trovões. Raimundo Varão não se intimidou e berrava ensandecido aos Céus que Deus provasse a sua existência mandando um raio que o partisse ao meio, causando arrepios nos companheiros de boemia. 


A praia Formosa, palco das farras do poeta. Aqui um registro da praia nos anos 40. 
Arquivo Nacional


Varão adoecia frequentemente de fulminantes e efêmeros amores, paixões platônicas e arrebatadoras. Varava a noite insone a entoar cânticos febris para as moças recatadas e ingênuas dos sobrados. Os pais apavorados se apressavam a esconder as filhas, pois o diabo estava à solta e não dormia. O infame tinha uma predileção pela inocência das imagens das santas da Igreja Católica. Dizia que todas as santas eram belas e a candura de suas mãozinhas postas arrebatava o sacrílego. Apaixonou-se perdidamente pela imagem de Santa Teresa de Jesus que vira em uma igreja de Fortaleza e para ela deixou escrito o seguinte poema: 

Teresa de Jesus, lírio da Espanha 
A casta luz de teu olhar magoado 
Só me desperta a fantasia estranha 
Das misérias da carne e do pecado; 
Por ti, no fundo d’alma se me entranha 
Não sei que o amor brutal de alucinado… 

Vem do bando falaz das ilusões 
A despertar-me os lúbricos anseios. 
(possam curar-me d’alma as podridões 
teus olhos imortais de sonhos cheios) 
Surgindo dentre inúmeras visões 
O alabastro divino dos teus seios… 

Santa ou louca? O que foste não importa, 
Pois nada importa quando o amor brutal 
Nos dilacera, nos domina e corta 
Como a lâmina fria de um punhal; 
E mais se a nossa alma se conforta 
Nas venenosas brotações do mal? 

Ó poetisa gentil de membros lassos, 
Nesses loucos acessos de histerismo, 
Como deviam ser os teus abraços 
Repassados de doce magnetismo… 
Por ti, meu coração feito em pedaços 
Havia de rolar no eterno abismo! 

Se tu vivesses hoje e os meus desejos 
Pudesse saciar no amor profundo, 
A volúpia infernal dos nossos beijos 
Abrasaria o coração do mundo… 


O poeta, historiador e membro da Academia Cearense de Letras, Juarez Leitão, escreveu sobre o "diabo" que havia morado na Capital cearense para a Revista Singular. Dono de uma fluência imaginativa de narrador de causos, o poeta foi rápido na ação de pesquisador da memória fortalezense:

 “Nas minhas entrevistas com as pessoas de idade, tentando reconstituir a memória oral da cidade, encontrei em três ou quatro ocasiões, referências a um homem que era o diabo. Essas alusões partiam de octogenários, geralmente mulheres, que antecediam seus relatos com um “meu pai contava” ou “minha mãe falava”. Eram lembranças terríveis, vindas da infância, sobre um homem estranho que aparecera em Fortaleza, todo de preto, com seis dedos em cada mão, que tinha parte com o diabo. Essa assustadora figura misturava-se a manjaléus e bichos-papões no afã terrorista das mães e babás de outrora para fazerem as crianças dormir mais cedo ou para que comessem os mingaus e papinhas sem demora. 



Sempre que ouvi referências à estranha figura do homem de seis dedos, ligava-as ao depoimento do poeta Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça” sobre Raimundo Varão: “Era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos, com olheiras cor de azinhavre. (...)”. Varão era um artista, poeta primoroso. Trabalhava na Fotografia Olsen, tendo como colegas de trabalho os irmãos Júlio e Otacílio de Azevedo e Herman Lima, que depois seria contista famoso e memorialista. 
Raimundo Varão marcou Fortaleza no começo do século XX por seu comportamento estranho e original e aqui produziu sua arte. Se o povo falava que ele era o diabo, ou seu missionário nesta terra, era porque o próprio Varão contribuía para isso. Imaginem um sujeito alto numa terra de baixinhos, olhos fundos, olheiras roxas, extremamente pálido, vivendo sem tomar banho e, além do mais, criando um sapo?! O soturno personagem praticamente não comia. A roupa acabava-se no corpo, e o fato de ser preta disfarçava-lhe a sujeira. Não o odor. Fedia, alguns diziam que a enxofre, que é o cheiro de satã. Tinha o comportamento daqueles poetas do ultra-romantismo, vivendo paixões unilaterais e arrebatadoras por musas inalcançáveis. Possuído da contradição dos desesperados, falava assim para uma delas: Anjo, mulher, demônio a quem venero, sombra que amaldiçoo e que bendigo, Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa de meu eterno desespero. 
O poeta viveu em Fortaleza entre 1911 e 1915. Dizem que foi embora para o Rio de Janeiro. De onde vivia mandou, tempos depois, para ser publicado na imprensa do Ceará, um belo soneto sobre Fortaleza. Era a saudade desta boa terra onde até os mefistofélicos se dão bem”.  

Soneto sobre Fortaleza (Raimundo Varão):

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...

*Dolor Barreira escreveu: "Raimundo Varão não era cearense, mas natural do Piauí, segundo estou informado."
Otacílio de Azevedo, porém, costumava dizer que ele era paulista, o que era confirmado por Luís de Castro.
Importante salientar que, Dolor Barreira, com seu admirável senso de justiça, compreendeu que, não obstante o fato de haver nascido fora do Ceará, tendo mesmo vivido aqui durante poucos anos, Raimundo Varão pode e deve figurar na história de nossas letras, razão por que fez questão de reunir, em sua História da Literatura Cearense, o maior número possível de composições de sua autoria. 


Revista Singular/ Jornal da Besta Fubana/ Newton Silva / BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza, A. Batista Fontenele, v. 3, 1954, p. 45.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Zé Tatá - O Grande Chalaça que entrou no folclore da cidade


"Quem conheceu Zé Tatá, que aqui nesta cidade residiu desde os fins dos anos quarenta até os anos noventa, e teve a calidez do convívio momentâneo e apaixonante de 

um cabaré, sentiu realizado o desejo ou frustrada a vontade, por não ter conhecido e participado das noites na zona, soube distinguir que o sussurro do impacto causado na paróquia, era maior do que o próprio pecado que já não era original, mas patrocinado pelo amor consagrado no impulso misto de virtude e pecado, que em nós pecadores se instalava como morada, tudo comandado pela força da mocidade, iniciada na infância, para realizar essa vontade quando se atinge a maioridade.

Era rumo à Pensão do Zé Tatá que toda juventude se dirigia como quem faz o caminho da roça em direção ao cortiço, como as abelhas, fazendo revoadas em torno dos mancebos, se acasalando naquele colmeal aconchegante do amor.

Zé Tatá, pessoa simples, era pouco alfabetizado, mas de tino comercial muito aguçado, o que lhe deu condição de administrar suas casas noturnas, porque era sobretudo uma figura hilariante, conhecedor de boa parte da sociedade Fortalezense, que lá frequentava e nutria suas paixões pelas desencaminhadoras odaliscas que dos diversos recantos dos Estados de Pará, Maranhão, Piauí, Recife e até do Rio de Janeiro, aqui chagavam para inquietar os corações dos cearenses desprevenidos da picada do “cupido”.

Sua maior lembrança ficou no nosso folclore, ao se dar nome de TATAZÃO ao famoso viaduto da Avenida Alberto Nepomuceno, esquina com a rua José Avelino - antiga rua Mesquita, que marcou a última morada na mencionada rua José Avelino n.° 156, quase esquina com a citada Avenida Alberto Nepomuceno.


Hoje, no viaduto Tatazão, uma multidão passa de carro por cima e outros tantos veículos por baixo, e alguém até dorme debaixo dele.

Funcionou inicialmente como casa noturna, na Rua Major Facundo entre as ruas Senador Alencar e São Paulo, em cima do prédio onde ficava Agência Admiral de Peças de Motores, “A pensão Ubirajara, depois transferiu-se para um sobradão antigo, com escadaria de madeira, Pensão Tabariz na rua Pessoa Anta n.° 120, em cima do prédio da Booth Line, onde mantinha música ao vivo, composta de vários instrumentos, sanfona, bandolim, cavaquinho, maracas, pandeiro e instrumentos de sopro, como saxofone e flauta, que faziam uma boa orquestra e se dançava até às 3 horas da manhã ao sons de samba, rumba, bolero, samba canção, valsa e fox. Mesmo dançando “colado”, o cavalheiro aguardava o momento próprio, quando se recolhia para curtir as carícias manifestadas no salão, dando “cheiro na orelha em busca do cangote da parceira”.

O prédio da rua Major Facundo com Senador Alencar em dois tempos, 1910 e 1975 - Nirez e Nelson Bezerra respectivamente


Foi na Pensão Tabariz que obteve talvez maior êxito no ramo, pela exuberância do local, frequência e mulheril que lá se hospedava. Depois Zé Tatá, abriu a Pensão Hollywood, na rua Barão do Rio Branco, em cima de uma Cooperativa com resumido espaço que não dava para dançar.


As pessoas mais relacionadas com Zé Tatá eram as colegas Marion, que se dedicava a arte de pedicure, Marlene, Paulete e o famoso Tereza que com ele trabalhou durante muitos anos e foi talvez a maior e a mais fiel amizade que teve, e ainda hoje vive, ostentando os seus oitenta e uns “biscoitinhos” de existência morando na Praia do Futuro e com o mesmo ramo de negócio.

Zé Tatá era versátil, acompanhava passo a passo os eventos que nessa cidade se desenrolavam, participando ativamente dos festejos carnavalescos. Assim durante o período momino se fantasiava e fazia parte do Bloco das Baianas, que no seu porte de “homão” ocupava, no bloco, proeminente posição, recebendo calorosos aplausos de todos quanto assistiam o corso que se iniciava na Avenida Dom Manuel, percorrendo a Avenida Duque de Caxias até alcançar a Avenida Padre Ibiapina, quando fazia o retorno pelas mesmas avenidas até a Praça do Cristo Redentor, na Igreja da Prainha. Era, para seu gáudio, momento de delírio e ardente satisfação, receber e retribuir os aplausos que do povo partiam em forma de manifestação e de apreço pelos trajes primorosamente trabalhados para ornar a fantasia.

Gazeta de Notícias - 30 de janeiro de 1957

Com o passar dos tempos, não participava mais do “Bloco das Baianas” mas, alugava um caminhão alegórico e, com pequeno número de músicos e instrumentos de sopro, fazia no corso a exibição de seu plantel que residia no “chateau”, cujas mulheres eram suas comensais e durante a noite faziam “salão”, como profissão, na conquista do amor à primeira vista trocando carícias e, em contra partida, tendo remunerado o seu tempo.

Era o amor sensação, amor volúpia, bem parecido com o que se vê nas atuais novelas exibidas em horário nobre, despertando na juventude o que deveria ter o tempo certo, apropriado, para tais explicitações.

Zé Tatá era muito extrovertido, bem humorado, às vezes, irônico, um tanto satírico. Seus ditos procuravam a hilaridade condizente, no bom sentido, com os histriões fesceninos.

Aqui não se quer discutir ou tecer considerações ou dúvidas quanto a sua masculinidade, mas lembrar a figura humana, por ser igual aos demais seres, do “chalaceador”, que de forma espirituosa deixou vivas recordações nesta cidade, que o acolheu como cidadão passando a fazer parte do folclore cearense recebendo seu pseudônimo, o batismo de um viaduto, “O Tatazão”. Era do seu temperamento dizer gracejos animando os frequentadores de sua casa noturna, onde imperava a alegria, com danças e folguedos, virando alegoria, após viver nesta cidade, por mais de oitenta anos, vindo de Sobral, sua terra natal, entrando assim, no conjunto das tradições do povo, expresso em costumes espalhados na população.

Assim, aquela figura exótica, cuja estatura de aproximados dois metros de altura, com quase 120Kg de massa corpórea, traços fisionômicos corretos, de prolongada calvície, de cor parda, semblante alegre, caminhar compassado, sem muita afetação, bem trajado, com sandálias quase femininas, mas com roupa adequada. Trazia o pescoço ornamentado por correntes de puro ouro, relógio no pulso e anéis com pedras preciosas.

Arquivo Nirez

Aquele homão despertava certa curiosidade a todos quantos com ele cruzassem no centro da cidade, e porque nos anos 50 cinquenta, pouca gente ousava bater papo ou mesmo trocar palavras com Tatá, pois o simples cumprimento, poderia ser comprometedor e deixar dúvidas... ou denunciar alguma preferência...

Enfim todos receavam e se preveniam de por em dúvida, naqueles idos tempos, a boa reputação. Temiam o refrão “quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele” ou “dize com quem andas, que te direi que és!” Se fosse visto ou flagrado pelos filhos de “Candinha”, estava frito e com a cotação abaixo da crítica.

Ah, sociedade retrógrada, exigente, muitas vezes era hipócrita com os seres humanos. Afinal não têm culpa de terem nascido homossexuais ou lésbicas. Biologicamente não se auto-principiaram. Já nasceram assim e por isso não deixam de ser criaturas como todos nós. Têm tudo que nós temos e às vezes virtudes que nem todos têm.

E essa discriminação que existia não só para ele, mas se estendia até para as grinfas que moravam nas “pensões altas”, do centro da cidade, e eram também excluídas da sociedade.

Quase não saiam pela cidade para fazer compras, porque as jóias e o vestuário eram vendidos na própria pensão. Quando saiam, apanhavam o carro na porta da pensão e os motoristas aguardavam na porta da loja, quase sempre sapataria - enquanto experimentavam sapatos, sandálias etc, tudo com muita rapidez.

Se, por ventura encontrassem alguém conhecido, faziam questão de não cumprimentar guardando a maior distância para não serem identificadas por seus michês, ou frequentadores dos salões.

Assim nessa pesquisa - um personagem diferente dos tradicionais - dos que também se dedicavam a manter pensões alegres ou casas noturnas, que tradicionalmente - se intitulavam - as pensões altas, por serem localizadas sempre no andar superior dos prédios antigos do centro da cidade, que foram residências das tradicionais famílias, de viscondes,
de barões, de comerciantes, enfim pessoas de fino trato, que formavam a requintada classe alta da sociedade alencarina.

Desse tempo o que se ouve dizer é que as moças com longos vestidos, com anquinhas, corpetes, cabelos com penteado de cócó, com longos pentes, fivelas e travessas cravejadas de pedras, prendiam os cabelos no alto da cabeça dando um ar senhoril às damas e senescal aos cidadãos, que vestidos com casimira inglesa nos diversos tons e cores sem se falar do excelente tecido de linho inglês, paletó preto ou azul marinho, calça bege ou riscado, ou mesmo almofadinha, jaquetão, traduziam o hábito de vestir da época dos que se dirigiam ao Passeio Público, passeando pelas alamedas da Avenida Caio Prado - local reservado na quadra, para as famílias gradas. Havia no Passeio Público, junto ao centro da praça, outra alameda que se destinava à camada social de “gente do povo”, evitando que houvesse a mistura das classes sociais. Uma chamada classe “rica” e na outra classe “pobre” ou dos empregados domésticos.


Com a retirada da banda que fazia retretas e das famílias nobres que residiam no centro da cidade, os casarões deram lugar aos estabelecimentos comerciais situadas nas principais ruas do centro.

Como exemplo cito o do meu bisavô - português Joaquim Dias da Rocha, comerciante que permaneceu por muitos anos na rua Major Facundo antiga rua da Palma, com Senador Alencar - antiga rua das Hortas, no fundo do Banco Frota Gentil- hoje Edifício Jangada, com Armazém de Secos e Molhados produtos vindos dos diversos países da Europa ainda no início do século XIX.

Eram estas ruas no lado norte do centro nervoso do alto comércio de Fortaleza, composto das mais importantes firmas comerciais, que predominavam abastecendo a capital e às diversas cidades do Ceará, no comercio atacadista e no retalho, desde os móveis de fabricação da
Áustria, Inglaterra, Portugal, França, como tecidos, pianos, instrumentos musicais, perfumes, ferragens e etc.

Como tudo na vida tem o seu tempo certo e sofre mutações com o passar do tempo, os casarões do centro da cidade foram ocupados por pensões alegres - e as mariposas ou famosas raparigas tomaram lugar “sentando praça”, como se costuma dizer, depois que entram na vida mundana.

Antes do Zé Tatá, existiam outros locais destinados às libações, como a pensão da Amélia Campos a mais famosa e outras de menor procura -Maria Cabelão” gaguinha - Irinete Alves Cabral, Oitão Preto e tantas outras. Já no dourados anos sessenta.

Prédio em frente a Padaria Lisbonense - Próximo a Praça do Ferreira

Aqueles casarões antigos do centro da cidade que outrora abrigavam nobres famílias, foram pouco a pouco se transformando em lupanares alojando as grinfas que provinham dos mais longínquos recantos do Estado e estados vizinhos, que infestavam o mercado da nossa urbe para retalhar amores a granel nos mais variados apetites masculinos.

Zé Tatá, figura de retórica a tudo assistia manifestando seu hilariante humor, animando a todos. No salão a contra-dança era com uma das comensais de sua preferência para estimular aos que participavam daquela alegria mundana, não só para mancebos, mas para respeitáveis senhores daqui da nossa paróquia ou oriundos das distantes cidades do nosso sertão cearense, que quando por lá apareciam, eram verdadeiros termômetros das boas safras algodoeiras, de sementes de mamonas, cera de carnaúba, peles e couros que faziam a receita do nosso Tesouro, manifestada pela exportação para o Sul do país e outros países, os nossos apreciados e divulgados produtos.

Dessa forma o Cabaré do Zé Tatá, também participava dessa fartura econômica, vendo os coronéis (pessoas abastadas do sertão) que lá se aboletavam formando grandes mesas num festival de raparigas que dançavam, pulavam de alegria bebendo tudo que tinham direito, comandadas pelo coronel, que simploriamente vestido no seu dolman, chinelos de rabicho e chapéu de bombucacho, dominava aquele ambiente festivo “do jeito que o diabo gosta”...

Entre os vivas e aplausos quem mais atirada fosse, ganhava o coronel, cuja preferência, a estas alturas, já não se dava conta e dizia - “o que cair na rede é peixe”...

Até porque toda aquela exultação era fruto de uma boa negociação de um agricultor que realizara entre os grandes atacadistas da “praia” como eram conhecidos os comerciantes de peles, couros, algodão e sementes que se situavam nas ruas José Avelino, Pessoa Anta, Dragão do Mar, Boris, Senador Almino, Almirante Jaceguai e outras ruas próximas.

As mariposas elegantemente vestidas de “soirée” nos tons vermelho, preto, azul, amarelo, verde, róseo mais espalhafatosos e berrantes - era no que se diz hoje - “no tom cheguei!”... “Para abafar”... e enfezar a turma...

Mas era por demais interessante frequentar a casa do Zé Tatá - por ser na sua exuberância, local para divertimento de toda faixa etária, onde todos se distraiam esquecendo o tempo passar. Ainda não se conhecia tão vulgarmente o “Stress”, a hipertensão, e principalmente a
tão conhecida “depressão”. Existia de vez em quando a melancolia ou tristeza que após uns tragos de bebida, boa música e uma odalisca de lado ia embora dando lugar à alegria para cantar a música da trilha musical da novela Da cor do pecado, segundo meu estimado amigo Dr. Bosco Câmara, curioso musicófilo no bom sentido, me diz ser de autoria de Bororó - Alberto de Castro Simões da Silva(1898-1986) - descendente direto da Marquesa de Santos - amante de D. Pedro II, gravação original de 1939, interpretado por Silvio Caldas:

Esse corpo moreno/ Cheiroso e gostoso/ Que você tem/ É um corpo delgado/ Da cor do pecado/ Que faz tão bem/ Esse beijo molhado/ Escandalizado que você me deu/ Tem sabor diferente/ Que a boca da gente/ jamais esqueceu/ Quando você me responde/ Umas coisas com graça/ A vergonha se esconde/ Porque se revela/ A maldade da raça/ Esse cheiro de mato/ Tem cheiro de fato/ Saudade tristeza/ Esta simples beleza/ Teu corpo moreno; morena enlouquece/ Eu não sei bem porque/ Só sinto na vida/ O que vem de você.
Zé Tatá - homenzarrão era também muito disposto, respeitado por todos que conheciam sua fama, por não ser morredor. Era um tipo destemido e extrovertido, ninguém nunca o via abichornado, estava sempre satisfeito com a vida e de nada se queixava, vivia em paz consigo
mesmo, assim diziam todos que a sua casa frequentavam bem como as suas amigas hóspedes. Cumpria com seriedade as obrigações comerciais que assumia, daí porque todos lhe creditavam no comercio local, granjeando bom conceito que o distinguia como ótimo pagador das dívidas por ele contraídas.

Arquivo Nirez

Na Boate Tabariz - Zé Tatá era quem abria a festa rodopiando no salão ao som da orquestra de pau, corda e sopro, escalando uma dançarina-noturna que bem pudesse representar o cabaré, na contra-dança.
Essa se chamava Francisca - conhecida pela alcunha deChica ou na sua falta - Das Doresou Clébia que eram conhecidas como pés de ouro...

De repente todos os presentes começavam a dançar com muita animação e não demorava muito o cabaré se inflamava com as músicas nos seus diversos ritmos - desde samba, samba-canção, bolero, fox, baião, valsa, terminando sempre com o famoso tango na voz de Carlos Gardel.

O cancioneiro predominado por Chico Alves, Nelson GonçalvesAlcides Gerardi, Ciro Monteiro, Luis Gonzaga, Erivelto Martins, Dalva de Oliveira, Ângela Maria e o cearense Carlos Augusto interprete de “Vitrine”, “Negue o seu amor” e varias composições de Adelino Moreira, cuja família composta de vários cantores, a partir de sua mãe Nenen Bandeira detentora de linda voz, Cleide e Adamir Moura (irmãs-vocalistas) e Henriqueta Moura que inaugurou a rádio P.R.E. 9, juntamente com os cantores José Jataí, Hildemar Torres, José Lisboa, Terezinha Holanda, as Três Marias, filhas da Professora de Música Maria de Lourdes
Gondim
, Mário Alves - Trio Nagô, Zuíla Aquiles, Keyla Vidigal, Maria Guilhermina e Telma Regina, que formavam o grande elenco de artistas cearenses, sem esquecer os grandes compositores Lauro Maia, Evaldo Gouveia e Aleardo Freitas.

Um detalhe que merece realce, diz respeito à gente boa que frequentava o seu cabaré, e se por ventura com ele cruzasse nas ruas do Centro da cidade ou no Mercado Central, onde diariamente fazia suas compras, demonstrava que não conhecia ou simplesmente acenava com o olhar num cumprimento cauteloso, para não ser notado por outras pessoas nem comprometer, evitando enxovalhar o bom nome e a reputação da pessoa com quem falava...

Era próprio do provincianismo que dominava a nossa cidade cheia de preconceitos ou atavismo. Parecia até que a indigitada pessoa era portadora de doença, cujo mau poderia pegar até num simples cumprimento. Tudo causava horror e admiração diante do pieguismo e primitivismo cultural e social da nossa gente naquela época.

Hoje tudo mudou. É tudo tão diferente. Parece até que houve inversão de valores, que só Freud poderia explicar com exatidão essa transformação do entendimento racional das pessoas que antes se escondiam por detrás de pseudo moralismo e hoje já se expõem com exagero dando lugar às insinuações malévolas. Será por depuração da sociedade ou, mesmo evolução dos tempos? Deixemos esses questionamentos para os estudiosos no assunto, os sexólogos, psicólogos ou médicos psiquiatras que tão bem sabem se desincumbir da missão.

Aqui se tem em mente, lembrar tipos, episódios, pessoas e coisas que marcaram no passado seus jeitos, construindo nesta nossa querida cidade, marcos indeléveis que devem ultrapassar o tempo, não deixando a memória morrer no esquecimento, trazendo até subsídios de qualquer ordem que possam interessar aos historiadores, antropólogos, arqueólogos e demais interessados no passar dos tempos.

Por isso, em evidência, um ser humano - Zé Tatá, que durante décadas e mais décadas preencheu com hilaridade o folclore cearense."

Zenilo Almada

Bônus: A Pensão do Zé Tatá - Luizinho de Irauçuba


Causos na Pensão do Zé Tatá

“Nosso saudoso Zé Tatá, sobralense ilustre, dono de uma pensão alegre que guardava e garantia o trabalho de meninas de vida...vamos dizer...livre pra não falar fácil (fácil?)

Pois bem. Veio do Recife para Fortaleza um time de futebol e no time um carinha metido a besta, desses pernambucanos que no passado achavam que o mundo começava e terminava entre as doenças do Capibaribe e do Beberibe.

Depois do jogo procurou um lupanar e foi cair na Pensão do Zé Tatá.

Bebeu, dançou, foi pro quarto com uma das meninas, apalpou desagradavelmente outras tantas e no fim botou boneco. Não queria pagar.

Era coisa de três horas da manhã e o tal cavalheiro começou a esculhambar com todo mundo, gritando que no Ceará não tinha homem, que macho ali só tinha ele e que não ia pagar coisa nenhuma e essas coisas que todo bonequeiro faz. Uma das meninas foi acordar o Zé Tatá e contou.

Tatá subiu nos tamancos e foi ao salão. Quando o valentão viu aquele armário (quase dois metros de altura por dois de largura e pelo menos um de fundos) tentou afinar. Zé Tatá limitou-se a dar-lhe uma patada que jogou o tal pernambucano na metade da escada já gemendo de dor. Zé desceu e foi chutando o besta até a porta. Lá embaixo, com o cara de cara amassada, costela quebrada, coração parando.


Zé Tatá pegou o cabra pelas bitacas, e deu-lhe a porrada de misericórdia, não sem antes avisar; Vá seu corno. E diga lá no Recife que no Ceará levou uma surra de um Viado.


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Zé Tatá - O Rei da noite
Fonte: O Bonde e outras recordações - Zenilo Almada/ http://macariobatista.blogspot.com.br/
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