Em Fortaleza, durante os anos de 1911 e 1915, viveu um homem estranho, que ninguém sabia de onde tinha vindo, se do Rio de Janeiro, Piauí ou São Paulo*. De acordo com as beatas da época, que juravam de mãos postas, aquela criatura só podia ter emergido dos quintos dos Infernos. O poeta Otacílio de Azevedo, no seu livro “Fortaleza Descalça”, assim o descreveu: “… era alto, magérrimo, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos e profundos com olheiras cor de azinhavre. (…) Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (…) Um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas histórias de Trancoso”.
Esse ser estranho, era ninguém mais, ninguém menos, que Raimundo Varão, tido como o mais excêntrico dos artistas cearenses. Era poeta e desenhista, tendo trabalhado no estúdio de fotografia do dinamarquês Niels Olsen.
Os cronistas do início do século XX, contam que o poeta não era nenhum pouco higiênico, mas lavava as mãos sempre que pegava em um livro. E que mesmo andando sujo e mal asseado, seus livros eram todos impecáveis, não possuindo um risco sequer, muito menos uma mancha em seu interior ou capa.
A pensão onde o poeta Raimundo Varão morava, ficava na Rua Formosa, atual Barão do Rio Branco.
De acordo com o contista, cronista e poeta bissexto Newton Silva, Raimundo Varão parece que não se importava com a alcunha de filho do diabo ou que era o próprio diabo em pessoa, visto que ele próprio contribuía para aumentar os mexericos e falatórios em torno de si. E os boatos aumentavam a cada dia. Ateu, só usava roupas pretas, era extremamente pálido como um vampiro, não tomava banho, praticamente não comia nada além de cerveja com bolachas, tinha um odor fétido de defunto e de acordo com a "boca miúda", ainda criava na pensão em que morava, um sapo amarelo com o qual conversava e trocava carícias. Tudo isso, era sem dúvida, ótimos motivos para as bocas ávidas de histórias mirabolantes dos fofoqueiros daquela época. Certa feita, depois de uma interminável noite de bebedeira, o enigmático poeta terminou a farra na Praia Formosa (hoje Praia de Iracema), em meio a uma tempestade com raios e trovões. Raimundo Varão não se intimidou e berrava ensandecido aos Céus que Deus provasse a sua existência mandando um raio que o partisse ao meio, causando arrepios nos companheiros de boemia.
A praia Formosa, palco das farras do poeta. Aqui um registro da praia nos anos 40.
Arquivo Nacional
Varão adoecia frequentemente de fulminantes e efêmeros amores, paixões platônicas e arrebatadoras. Varava a noite insone a entoar cânticos febris para as moças recatadas e ingênuas dos sobrados. Os pais apavorados se apressavam a esconder as filhas, pois o diabo estava à solta e não dormia. O infame tinha uma predileção pela inocência das imagens das santas da Igreja Católica. Dizia que todas as santas eram belas e a candura de suas mãozinhas postas arrebatava o sacrílego. Apaixonou-se perdidamente pela imagem de Santa Teresa de Jesus que vira em uma igreja de Fortaleza e para ela deixou escrito o seguinte poema:
Teresa de Jesus, lírio da Espanha
A casta luz de teu olhar magoado
Só me desperta a fantasia estranha
Das misérias da carne e do pecado;
Por ti, no fundo d’alma se me entranha
Não sei que o amor brutal de alucinado…
Vem do bando falaz das ilusões
A despertar-me os lúbricos anseios.
(possam curar-me d’alma as podridões
teus olhos imortais de sonhos cheios)
Surgindo dentre inúmeras visões
O alabastro divino dos teus seios…
Santa ou louca? O que foste não importa,
Pois nada importa quando o amor brutal
Nos dilacera, nos domina e corta
Como a lâmina fria de um punhal;
E mais se a nossa alma se conforta
Nas venenosas brotações do mal?
Ó poetisa gentil de membros lassos,
Nesses loucos acessos de histerismo,
Como deviam ser os teus abraços
Repassados de doce magnetismo…
Por ti, meu coração feito em pedaços
Havia de rolar no eterno abismo!
Se tu vivesses hoje e os meus desejos
Pudesse saciar no amor profundo,
A volúpia infernal dos nossos beijos
Abrasaria o coração do mundo…
Sempre que ouvi referências à estranha figura do homem de seis dedos, ligava-as ao depoimento do poeta Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça” sobre Raimundo Varão: “Era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos, com olheiras cor de azinhavre. (...)”. Varão era um artista, poeta primoroso. Trabalhava na Fotografia Olsen, tendo como colegas de trabalho os irmãos Júlio e Otacílio de Azevedo e Herman Lima, que depois seria contista famoso e memorialista.
Raimundo Varão marcou Fortaleza no começo do século XX por seu comportamento estranho e original e aqui produziu sua arte. Se o povo falava que ele era o diabo, ou seu missionário nesta terra, era porque o próprio Varão contribuía para isso. Imaginem um sujeito alto numa terra de baixinhos, olhos fundos, olheiras roxas, extremamente pálido, vivendo sem tomar banho e, além do mais, criando um sapo?! O soturno personagem praticamente não comia. A roupa acabava-se no corpo, e o fato de ser preta disfarçava-lhe a sujeira. Não o odor. Fedia, alguns diziam que a enxofre, que é o cheiro de satã. Tinha o comportamento daqueles poetas do ultra-romantismo, vivendo paixões unilaterais e arrebatadoras por musas inalcançáveis. Possuído da contradição dos desesperados, falava assim para uma delas: Anjo, mulher, demônio a quem venero, sombra que amaldiçoo e que bendigo, Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa de meu eterno desespero.
O poeta viveu em Fortaleza entre 1911 e 1915. Dizem que foi embora para o Rio de Janeiro. De onde vivia mandou, tempos depois, para ser publicado na imprensa do Ceará, um belo soneto sobre Fortaleza. Era a saudade desta boa terra onde até os mefistofélicos se dão bem”.
Soneto sobre Fortaleza (Raimundo Varão):
Lá, sob um claro céu de azul-turquesa,
Onde o sol seu tesouro em luz descerra,
Lá fulge a legendária Fortaleza,
Como um raro brilhante sobre a Terra.
Como um sacro penhor da Natureza,
Como um beijo auroral que a vida encerra,
Longínqua e bela, a lânguida princesa,
Arfando o peito, geme e os olhos cerra.
Porque nos batem temporais medonhos
E tivemos no mundo a mesma sorte,
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio
É ter a paz na comunhão da Morte,
Dormindo em sete palmos do teu seio...
*Dolor Barreira escreveu: "Raimundo Varão não era cearense,
mas natural do Piauí, segundo estou informado."
Otacílio de Azevedo, porém, costumava dizer que ele era paulista, o que era confirmado por Luís de Castro.
Importante salientar que, Dolor Barreira, com seu admirável senso de justiça, compreendeu que, não obstante o fato de haver nascido fora do Ceará, tendo mesmo vivido aqui durante poucos anos, Raimundo Varão pode e deve figurar na história de nossas letras, razão por que fez questão de reunir, em sua História da Literatura Cearense, o maior número possível de composições de sua autoria.
Revista Singular/ Jornal da Besta Fubana/ Newton Silva / BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza, A. Batista Fontenele, v. 3, 1954, p. 45.
Otacílio de Azevedo, porém, costumava dizer que ele era paulista, o que era confirmado por Luís de Castro.
Importante salientar que, Dolor Barreira, com seu admirável senso de justiça, compreendeu que, não obstante o fato de haver nascido fora do Ceará, tendo mesmo vivido aqui durante poucos anos, Raimundo Varão pode e deve figurar na história de nossas letras, razão por que fez questão de reunir, em sua História da Literatura Cearense, o maior número possível de composições de sua autoria.
Revista Singular/ Jornal da Besta Fubana/ Newton Silva / BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza, A. Batista Fontenele, v. 3, 1954, p. 45.