D. Zezé no seu inesquecível Cirandinha - Foto arquivo Nirez
... Frequentava o restaurante Cirandinha da Praia de Iracema com suas mesas cobertas de toalhas quadriculadas.
Na extremidade oeste das casinhas e boates que existiam ali, havia a Churrascaria Cirandinha, onde comi muito baião-de-dois com chuleta assada à moda cearense.
... E o Cirandinha, que vendia um churrasco fantástico.
Campelo Costa
Frequentei o Cirandinha durante bom tempo, os últimos anos de 50 e boa parte de 60. Logo que conheci o Cirandia me apaixonei por ele, e dividi esta paixão com o Lido, sendo
que ao Cirandinha eu devotava as horas de boa boemia.
Ah! quanta saudade, como eram bons aqueles tempos...
Clóvis Acário Maciel
A Churrascaria Cirandinha ou simplesmente Cirandinha, como era conhecido – O primeiro Grill de Fortaleza – Sobreviveu por 35 anos, no mesmo local, na Praia de Iracema, de costas para o mar que batia impiedoso em sua contenção. Fundado por Maria José Lima, uma mulher de força e visão, da família Mourão, de Ararendá e pelo garçon do antigo Restaurante Lido, que normalmente a servia, por nome João Asa Branca, um mulato valente, de quase dois metros de altura.
O Cirandinha foi feito à mão. Os dois se uniram em romance e na construção de paredes, tijolo a tijolo, pedra a pedra daquela construção que viria a ser um espaço disputado por todas as classes sociais de Fortaleza.
Poucos sabem, mas o sucesso do Cirandinha em Fortaleza e a ousadia do levaram à construção do segundo Cirandinha e um hotel na Transamazônica, de onde o General de Plantão, inaugurou a invasiva Via Selva à dentro.
D. Zezé, uma batalhadora! Foto do arquivo pessoal de Hugo Lima
D. Zezé era uma mulher muito bonita. De dona de casa separada, partiu pro Rio de Janeiro, fugindo de um casamento que não dera certo, sem passar por Fortaleza e sem identidade. Quando aqui retornou, já era uma mulher experiente e ousada. Sabia o que queria e impunha seus sonhos com maviosa categoria. Era simpática e valente. Um homem e uma mulher em uma só pessoa. Rapidamente tornou-se uma mulher de negócios como poucas que conheci. Sabia comprar como ninguém. Sabia fazer amigos, entre fornecedores e clientes todos a adoravam. Era muito exigente com a qualidade dos pratos que o Cirandinha oferecia.
O João Asa Branca foi seu parceiro nos negócios durante muitos anos. Rapidamente o Cirandinha prosperou. Comprou uma mansão nas Dunas. Todo ano era carro novo para cada um da família. Mandou a filha para Londres... Ela era assim. Trabalhar era sua alegria, mas gostava de fartura e das coisas boas que o mundo oferece a quem pode. Sua vida, como era de se esperar de quem cuida de todos, sempre foi atribulada. O Cirandinha era sua alegria. Trabalhava se divertindo, ao mesmo tempo em que dizia a todos: “Isto é um negócio pra não se desejar ao pior inimigo!” .
Com o tempo Asa Branca e ela se separaram aos poucos, como é mais razoável entre seres que se amaram. Ele ainda tentou emplacar, com ajuda dela, alguns negócios na vizinhança do Cirandinha. Nada vingou. Terminou indo para Altamira, no Pará onde se estabeleceu e anos depois tentou dar cabo à própria vida dando um tiro na cabeça. Sobreviveu, mas a bala ficou rodando em seu cérebro provocando crises sistemáticas de dor de cabeça. Depois de anos foi ao Maranhão e resolveu se operar para a retirada do projétil. Não resistiu à operação vindo a falecer.
Nos 35 anos de sua existência, o Cirandinha foi comandado por mais três casais: sua filha Ivonnilde e o marido; seu filho Hugo e a esposa Branca e sua filha Olga, a caçula e eu¹. A última reinauguração do Cirandinha foi em 31 de dezembro de 1990. Um réveillon com lua cheia e marés altas que invadiram os salões por volta da meia-noite, enquanto uma banda composta somente por mulheres, indagava se deveriam parar ou prosseguir com o show. Claro que sim, gritamos nós. Continuem! Aquela aflição já era, para nós, um fato normal. Fazia parte das contradições do Cirandinha.
Corredor Cultural - Na foto, Pedro Carlos Alvares e sua ex-mulher e ex-sócia no Cirandinha, Maria Olga Almeida Lima. Esse foi o dia da última inauguração. Os quadros que ilustram o corredor são do artista Nogueira², da UFC. Essa inovação foi projetada por Pedro Carlos Alvares para que os clientes tivesse um pouco mais do que comida e bebida.
Foto do arquivo Nirez
Um ano depois da inauguração, começaram as reuniões com o prefeito Juracy Magalhães, assessores e alguns empresários de alto poder no mundo dos negócios em Fortaleza, no extinto Hotel Colonial, para discussão do projeto de requalificação, da área, na Praia de Iracema. Estava previsto, entre outras, a construção de um calçadão e a retirada de todas as edificações presentes ali. Estranhamente fomos convidados.
Lá chegando, compreendemos a ameaça velada em que o Cirandinha iria se envolver. O discurso do prefeito foi claro. Sai tudo, menos o Cirandinha, que deverá ser demolido por vocês para que façam um projeto mais adequado a quem vai ficar sozinho sobre o belo calçadão. Quem viveu os nove meses seguintes, sabem que não foi bem assim... Quase nos desapropriaram sumariamente. Não fosse nossa luta constante e pesada teríamos saído como os demais, pois sempre fora essa a intenção de todos.
Demolimos o Cirandinha e em seu lugar fomos obrigados a construir por R$ 50 mil reais, uma barraca de praia que nada lembrava o velho e querido Cirandinha. Os clientes ficaram indignados como nós e para evitar fracasso maior, vendemos a mesma para os donos do Bebelu, que à época ainda se chamava Babalu.
A vida novamente se espalhou. Fui trabalhar em projetos especiais da TV Cidade.
D. Zezé e Olga foram morar em um apartamento pros lados do Monte Castelo e a vida seguiu em frente. Anos depois, em 1998, fui morar no Rio de Janeiro e perdi contato com as duas. Soube em 2003, que estavam morando em uma fazenda. Foi lá onde D. Zezé, morreu, um dia depois de saber que nessa intervenção atual, tinham derrubado a Barraca Cirandinha.
Antes do infarto que a levou, teria dito à sua filha Olga: “O Cirandinha se foi, não tenho mais porquê continuar aqui.” Pediu, que quando morresse, procedesse sua cremação e que suas cinzas fossem espalhadas na Praia que por tantos anos abrigou a sí, seus amores, seus filhos e o inesquecível Cirandinha!
D. Zezé - Foto do arquivo pessoal de Hugo Lima
O Cirandinha foi palco de muitos acontecimentos marcantes, sejam eles felizes ou tristes...
Airton Monte – Carta ao Poeta – 27 de Outubro 2011
Pois é, meu caro e saudoso amigo Rogaciano Leite Filho, como sempre, quando as saudades suas me batem mais forte, mais fundas e mais fecundas, escrevo para você, sob color de crônicas, cartas que nunca mando, mas que talvez você até as receba, seja lá onde você estiver, através dos mensageiros misteriosos que a nossa vã filosofia nem sequer é capaz de supor, imaginar. Desde que você, meu poeta, nos deixou em busca dos etéreos campos do além, que ninguém sabe onde ficam ou se verdadeiramente existem, naquele fatídico dia cinco de março de 1992, tragado por uma terrível doença. Era uma quinta-feira, eu não consigo esquecer esta data nem jamais ela fugiria de minha memória mesmo que eu tentasse dela escapar desesperadamente. E eu assim prefiro permanecer indefinidamente preso à sua lembrança porque você fez e faz parte essencial do meu existir.
Estava eu posto em sossego, aboletado numa das mesas do Cirandinha, costumeiro ponto de encontro de nossa turma de jovens boêmios, por volta de umas nove horas da noite de uma quarta-feira repleta de promessas noturnas a nos esperar pelas esquinas líricas do território poético da Praia de Iracema. Eu entornava solitariamente umas cervejas, esperando a ansiada chegada de uma doce amiga. Súbito, o companheiro Pedro Álvarez adentra o recinto feito um vendaval, senta-se a meu lado e com os olhos vermelhos, marejados me conta de sopetão, com a voz embargada pela intensa emoção que o consumia, que você havia morrido há pouco, mal soara as oito da noite. Na hora não chorei, de minha boca repentinamente emudecida não saiu uma palavra, um tímido gemido, um murmúrio. Naquele momento eu era apenas um homem feito de silêncio e dor, nada mais.
Deixei-me fitando longamente o azul escuro do mar do alto daquele terraço de um restaurante que hoje não mais existe e lembrei de um verso triste de Antonio Girão Barroso: “Todos nós envelhecemos e um dia morreremos. Mas a vida é isso, mas felizes somos no minuto que passa, e não nos lembramos da velhice nem da morte, que é fatal”.
Leia o restante da crônica aqui
¹ Nós três (eu, Olga e D. Zezé) éramos sócios com 33% cada. Quando saí, dividi minhas ações para as duas, sem nenhum ônus.
Pedro Carlos Alvares
² O artista plástico Nogueira, era um funcionário do curso de arquitetura da UFC, muito querido pelos estudantes de arquitetura. Acho que já partiu. Um primitivista de elevada qualidade.
Pedro Carlos Alvares
Você tbm poderá fazer parte dessa homenagem ao Cirandinha, basta mandar sua história para fortalezanobre@r7.com
Continua...
Créditos: Pedro Carlos Alvares e Nirez