Praça Cristo Redentor, vendo-se ao fundo a Igreja da Prainha - Arquivo Nirez
Por essência, o povo compôs a alma da avenida, dos
fundadores aos habitantes atuais...
Descobrir a história de uma rua e da região que a
cerca não é tarefa fácil. Documentos históricos são raros e quando encontrados,
são pouco organizados. O Arquivo Público do Estado do Ceará (localizado na RuaSenador Pompeu, 648, Centro) abriga pilhas de papéis seculares. O maior
problema é a falta de esquematização, o que dificulta a pesquisa.
Nas largas calçadas, depois da esquina da Rua Senador Almino, pães de queijo e salgados atraem a atenção dos passantes. Saindo de um estreito corredor da casa onde moram desde que nasceram, as irmãs Leda Maria e Rosângela Braga vendem seus quitutes. Elas logo advertem:
“Todo mundo tá viajando, vai ser difícil encontrar alguém pra falar disso (do passado)”. Mas, conversa vai, conversa vem, algumas indicações de nomes surgem.
Uma colega das irmãs, Lúcia Mendonça, ainda comenta sobre uma tia antiga que lembrava de velhas histórias da rua. Uma delas dizia que a maré alta chegava a lavar as costas da igrejinha. A frente da igreja, nesse período, estava virada para Avenida Dom Manuel. Do outro lado da rua, um almoço quente e barato é servido àqueles de menor poder aquisitivo. É a lanchonete do Luiz. Lá, há 47 anos mora o comerciante Luiz Antônio Alves de Souza, residente desde que nasceu. Em meio aos trocados do caixa, atendendo um e outro pagante, ele expõe as lembranças e relatos que a mãe citava. No início da década de 20 a mãe de Luiz, Maria Lúcia, é uma das fundadoras da avenida. Quando ela adquiri a propriedade, nem mesmo os quarteirões estavam formados. Luiz relembra até os tempos de menino e os jogos de bola pela velha Monsenhor Tabosa. Ele relata que muitos dos moradores à época eram comerciantes, trabalhavam no Centro, na Rua Conde D’eu. Já a mãe começa vendendo artesanato e alugando o ponto para lojas. “Aqui é um ponto bom, resolvi ficar”, responde o comerciante, atendendo aos clientes ansiosos pelo troco.
“Ainda tem família, mas é intocada”, revela Braz da Silva, referindo-se a antiga Rua do Seminário. Ele mora na Travessa Aracoiaba, oficialmente Ademar de Arruda, com a mulher Terezinha Andrade da Silva. A casa é simples, interiorana. De grande riqueza só mesmo o diamante das bodas – 60 anos de casados. A mulher mora ali desde que nasceu, em 1929. A rua em que mora é paralela à Monsenhor Tabosa e também já foi conhecida como Rua do Bagaço. Dona Terezinha explica que é por causa das casas construídas com bagaço de cana-de-açúcar.
O simpático casal de idosos conhece as imediações, mas não saem como antes. A filha Francisca Maria Andrade é quem aproveita a proximidade do centro comercial para fazer suas compras mais necessárias. “Ah, antigamente na Monsenhor só morava ‘gente chique’. Antes é que morava gente mais humilde”, recorda Francisca. D. Terezinha some por um espaço de tempo da sala. Quando volta, traz o documento amarelado, quase em pedaços, ilustrando que o terreno, onde ela mora hoje, fora da Igreja. O papel, datado de 1957, simboliza o pagamento dos fóros, quantias pagas anualmente a Arquidiocese, por metro quadrado de terra. “Era uma mixaria, a gente pagava na Igreja da Sé”, indica a dona de casa.
Sapateiro de oito décadas vividas, Braz da Silva, remonta aos clubes da vizinhança, onde ia jogar bola pelo dia, e se divertir dançando e bebendo pela noite. Enumera alguns exemplos, Clube Vila Bancária, Idealzinho, Canto do Rio, Clube Massapeense, Onze Cearense e a Baixa do Veado. Entre a Monsenhor Tabosa e a Nogueira Acioly, encontra-se a Praça da Graviola, que segundo o casal, “tem até apartamentos”. A comunidade é antiga. Na infância, D. Terezinha já ouvia falar dela, e apesar dos preconceitos sociais embutidos, a praça – ou favela - “é também lugar de famílias trabalhadoras e honestas”. Voltando para a Monsenhor Tabosa, a procura é agora pelo seu Tarcísio Pedro de Oliveira, ou o Tarcísio Lanches. Perguntando em lojas das proximidades, uma vendedora é enfática: “Aquele ignorante? Se fosse você nem ia falar com ele”. Talvez por falta de conhecimento ou por fofocas implicantes, a moça não tenha um contato direto com o conhecido comerciante daquelas bandas. Tarcísio recebe os fregueses calorosamente, e não é diferente quando se trata em contar um pouco do que lembra ao longo dos 51 anos de Monsenhor Tabosa. “Tinha muitos portuários, caminhoneiros, operários e vendedores”, rememora. A lanchonete que mantém com a esposa, era do pai que veio de Cascavel. Conta ainda que a rua possuía um campo de futebol no estilo de sítio, com muitas bananeiras e coqueiros. Haviam três bodegas principais: a do Seu pai, a de Seu Antônio e a de Seu Carlinho. Quando ia para a missa, os padres contavam acerca da história da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha e com ela a do personagem Monsenhor Tabosa. Para um pouco de atender os clientes, e busca em seus guardados uma valise empoeirada, o texto que o sacerdote entregava. Destaca também a centralidade da rua na cidade: “Nós vivemos perto de tudo, perto do mar, perto do Centro. Aqui ninguém precisa ter carro”, considera.
Uma das últimas remanescentes dos primeiros habitantes da Monsenhor Tabosa se encontra em uma casa que atravessa o quarteirão. D. Vilca Galvão, sentada na mesa da cozinha, reconsidera todo o passado para traçar a linha de vida naquele lugar. “Meu pai era industrial”, lembra-se quando fala da padaria do pai: A Confeitaria Galvão. O pessoal da estiva - serviço de carregamento e descarregamento de navios no porto - ocupava algumas casas da Rua que era toda em calçamento até o Ideal. Aliás a moradora de 78 anos reclama que “o asfalto suja muito”. Relembra as novenas realizadas no Seminário pelo Padre Arruda que eram a grande festa daquele tempo. As moças de vinte anos de idade nem sabiam o que era beijo, exulta. Lecionou no Colégio de Mister Hull, até o seu fechamento entre 1955 e 1960. Em Geografia Estética de Fortaleza, Raimundo Girão apresenta que onde é o atual Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, já existiu um estacionamento. Nas lembranças de Dona Vilca, tais dados históricos não se confirmam. Por último ela assevera que a avenida “é muito calma, (os moradores mais novos) não são nem daqui, vem de fora”.
Os badalos da igreja do Seminário da Prainha ecoam misturando-se ao som das buzinas como uma forma de resistência de uma cidade que não há mais. Quase que imperceptível, o barulho persistente do ventos nas folhas das carnaubeiras tira os olhos do transito caótico das 18h de uma segunda-feira...
O Seminário - Arquivo Nirez
Então qual era a verdadeira Monsenhor Tabosa? Passarela da moda, Centro Comercial ou seria Centro Artesanal? Todas essas repostas correntes que sempre enquadravam-se para designar aquela avenida naquele momento não foram suficientes. Havia algo mais ali. O badalar do sino da igreja ressaltava uma outra Monsenhor Tabosa. No passado a presença do Seminário era tão forte para aquele logradouro que até já foi usado para sua denominação: Rua do Seminário. Com casas erguidas em terrenos da igreja a influência religiosa na avenida é inegável e está presente até hoje. A substituição do nome por Monsenhor Tabosa, homenageando um sacerdote que dedicou sua vida aos doentes e pobres, é mais uma forma de reafirmar a história da rua em meio aos shoppings e lojas que proliferam pela avenida.
Outro prédio que se destaca em meio às lojas é o SEBRAE, onde são promovidos cursos profissionalizantes além de eventos culturais, como a feira da música. Além de claro, o Centro Cultural Dragão do Mar, que apesar de localizar-se na avenida é inegável sua influência na região. O Centro Cultural, batizado com o nome do pescador que é o símbolo do fim da escravidão no Ceará, aumenta o número de frequentadores da Avenida, que junto ao Dragão do Mar torna-se um ponto turístico do cidade. Apesar do seu aspecto comercial ser o mais usado para justificar a alta frequência de turistas, é inegável que um passeio pela Avenida também seja um passeio pela história da cidade e os aspectos que identificam o povo cearense, como a religiosidade.
O espaço hoje ocupado pelo Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. Foto da déc. de 20 ou 30. Arquivo Nirez
Foto de Rick Foth
Foto da época da Inauguração da torre do Cristo Redentor - 1922 - As casinhas são na
Rua Rufino de Alencar. Arquivo Nirez
Rua Rufino de Alencar. Arquivo Nirez
Na Monsenhor Tabosa, também se encontra a biblioteca Pública Estadual (Governador Menezes Pimentel).
Inauguração do novo prédio da Biblioteca Pública na Praça do Cristo Redentor, vendo-se Renato Braga, general Teles Pinheiro, Raimundo Girão, Parsifal Barroso, Antônio Martins Filho e José Lins Albuquerque. Foto Estúdio Eln - Arquivo Nirez
Foto de Edimar Bento
A Avenida Monsenhor Tabosa não pode ser taxada meramente como um centro comercial. Ela é muito mais importante que isso, é na verdade uma idiossincrasia nossa. Nela estão presentes elementos peculiares da nossa formação. Olhar a Avenida e elementos ao seu redor, que a ajudam a compor aquele cenário, sempre lembrado como um lugar comercial e de trânsito caótico, é olhar para a composição de uma identidade cultural que insiste em existir mesmo sendo ignorada.
A cara da Monsenhor Tabosa, apesar de maquiada por lojas, continua sendo uma expressão da formação de uma gente, de uma história que, sem termos consciência, nos pertence. A cara da Monsenhor Tabosa, é a minha, é a sua cara.
A cara da Monsenhor Tabosa, apesar de maquiada por lojas, continua sendo uma expressão da formação de uma gente, de uma história que, sem termos consciência, nos pertence. A cara da Monsenhor Tabosa, é a minha, é a sua cara.