Praça do Ferreira ainda com o Cajueiro da Mentira - Arquivo Nirez
Estabeleceu-se naquele local, concentrando, em pouco, em seu tôrno, as atenções dos fortalezenses, pois era homem de visão larga e notável simpatia. Sua botica ficou sendo o "rendez-vous” dos políticos da terra, da gente de prol. Dado o prestígio granjeado pelos seus dotes pessoais, era, em 1848, eleito vereador e, logo mais, vice-presidente, depois, presidente da Câmara Municipal da Capital, cargo que exerceu, ininterruptamente, pelo largo período de doze anos, trabalhando sempre em prol do desenvolvimento material da cidade, e cujo nome ficou perpetuado na Feira Nova, como homenagem póstuma dos seus contemporâneos, após seu falecimento, em 29 de abril de 1859.
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Antônio Rodrigues Ferreira, o boticário Ferreira, foi o político do seu tempo que mais influência exerceu e que maiores benefícios prestou ao aformoseamento da cidadezinha que desabrochava promissora. Até o seu tempo, a Feira Nova, — nome que se lhe aplicou em virtude de ser ali que os comboieiros costumavam expor à venda as mercadorias trazidas do sertão, — morria no beco do Cotovêlo, formada de uma linha modesta de casas modestas, em cuja extremidade se trifurcava em ruelas pobres. Dessas, uma, a que ia parar na Lagoa do Garrote, em determinado ponto, um pouco além, possuía, situado no centro da rua, grandioso e ensombrado cajueiro. À sombra dele, ficava a casa do Fagundes, o único açougueiro da terra. Ali matava e ali esquartejava as reges. Relembremos, com emoção, o episódio que o celebrizou, e que já foi contado, com pena de mestre, por Gustavo Barroso. Ocupava, a êsse tempo, o cargo de governador da Provincia, Luís da Mota Féu e Tôrres, homem ríspido e muito jactancioso das funções que exercia. Costumava êle passear em belo cavalo, tôdas as manhãs, e aconteceu que, certa vez, ao passar sob a frondosa árvore, seu chapéu de três bicos agaloado e com tope fôsse arrancado por um galho. Apanhe meu chapéu, gritou o governador, para Fagundes que, em mangas de camisa, gozava a fresca, assentado num tamborete. Êste não deu ouvidos, imperturbável ficou, imperturbável continuou. Luís da Mota, mais áspero, deu nova ordem. Inútil o resultado. Fagundes permaneceu impassível. Irritado, esporeou o cavalo e avançou, resoluto, na direção do açougueiro, que não se intimidou. Era homem afoito e corajoso. Jamais o haviam humilhado. Se o governador lhe pedisse com boas maneiras, com jeito cortês, por favor, ergueria, sem constrangimento. Mas, daquela forma, com grosseria e com imposições, jamais se submeteria. E foi o que aconteceu. O tom ameaçador de Mota Féu não o demoveu: Não me apanhas o chapéu, vilão duma figa, pois eu, que ia sõmente mandar cortar o galho baixo do cajueiro, agora vou pé-lo no chão e adeus açougue!
Dali seguiu, exacerbadíssimo, o Governador rumo ao Palácio, que ficava naquela casa envelhecida e escura de sujo, que se erguia, acaçapada, dentro de verdadeira muralha, na rua de Baixo, nas imediações do Mercado de Cereais.
Praça do Ferreira no início do século XX - Arquivo Nirez
A notícia esparramou-se, veloz como um raio, pela cidade quieta, desacostumada a novas dêsse jaez. Tôda a gente bisbilhotou, assanhada. A novidade era de deixar o fortalezense de bôca aberta. — Mas o Fagundes enfrentara mesmo o Governador? — perguntava-se, incrédulo. Era, não há dúvida, homem peitudo de fato. Já o sabiam, mas não para tanto.
O certo é que, no dia seguinte, cedo, cedinho, mal o sol despertara, já os empregados do Governador, armados de machado, ameaçavam derrubar o cajueiro do Fagundes. Êsse, munido de longa faca, juntamente com meia dúzia de magarefes, pôs em fuga os emissários de Mota Féu. A notícia esparramou-Se, veloz como um raio, pela cidade quieta, contaram ao Governador o que acontecera. o qual mais irritado ficou, determinando a ida ao local de uma leva de praças de polícia. Nesse ínterim, o afoito Fagundes, que tudo previra, provocou uma espécie de levante: trouxe para a rua os açougueiros do Garrote, os flandeiros da rua da Boa Vista, os merceeiros da rua Formosa, os carapinas da rua de Baixo, os ferreiros da rua do Quartel, até os pescadores da Prainha, todos os que tinham uma profissão no lugar. Traziam pistolas e bacamartes. A tropa carregou-os. Então levantaram trincheiras na encruzilhada das três ruas e abriram fogo contra ela, que recuou. Daí o nome das três ruas, perpetuando o episódio: rua do Cajueiro, rua das Trincheiras e rua do Fogo”.
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E, encerrando narrativa tão emocionante, Gustavo Barroso escreve: “O governador desistiu de pôr abaixo cajueiro,a cuja sombra o Fagundes continuou a vender carne à cidade. A vontade dum homem só, não conseguiu vencer a duma população inteira, O capricho dum tirano não conseguiu impor-se a uma gente que ainda tinha vergonha e brio. Defendendo sua liberdade contra a tirania, os antigos habitantes da humilde vila do Forte, como era chamada a nossa Fortaleza, deixaram escrito nas tabuletas de suas ruas um belo exemplo às gerações vindouras.” Era assim o fortalezense intrépido e desenvolto. Pagava para não brigar, mas, quando na briga, pagava para não sair. Perto, pertinho, branca de cal, erguia-se a velhíssima igreja do Rosário, e, logo adiante, quase nos fundos, na rua que lhe tomara o nome, hoje Cel. Bizerril, ficava outra árvore, também histórica para o filho da terra. Era o oitizeiro do Rosário, que a cidade inteira conhecia e amava. O oitizeiro-macróbio, como o haviam cognominado, muitos anos depois. Ali o vimos, nos tempos da nossa meninice e assistimos, contristados, quando a picareta do progresso o prostrou, com o geral protesto de tôda uma população. Foi Gustavo Barroso, quem o cantou em página lapidar: “Velho oitizeiro, contemporâneo da fundação da minha cidade natal, ninguém te cantou a vida centenária nem a morte breve. Não houve um Afonso Arinos para louvar a tua solenidade verde e triste como a do Buriti Perdido, testemunha silenciosa das bandeiras! Quando nasceste brotando tímido do solo arenoso, a vila do Forte compunha-se duma única rua torcicolosa, emparelhada ao curso do Pajeú. Aqui e ali, dela saía um beco de mocambos e casebres de taipas. A capela do Rosário, caiada de novo, dava-te as costas com desdém. Cresceste. A capela tornou-se igreja e a tua copa chegou ao beiral do seu telhado. Por cima dos cercados e das ateiras, vias para os lados do Garrote a histórica cúpula de verdura do Cajueiro do Fagundes, que o governador Luís da Mota Féu e Tôrres quis pôr abaixo, recuando diante do poviléu assanhado e feroz. E éreis as duas árvores tradicionais da cidade que se ia formando.
O cajueiro, que servia de açougue, morreu de velhice. Tu continuaste a crescer, a deitar raízes, a aumentar a fronde, no meio dos casebres barrigudos e escuros. Viste a displicência do viajante Koster, sentado ao luar numa “roda de calçada” da praça vizinha. Ouviste o taciturno murmurar do governador Sampaio. Avistaste o governador Rubim vendendo apressadamente as alfaias antes de regressar a Portugal. E estremecestes rudes vozes de comando de Conrado Jacó de Niemeyer, depois de vencida a revolução de 1824.
A cidade de Fortaleza foi crescendo contigo, lentamente, sob o sorriso azul do céu, alegre nas invernias, melancólica nas sêcas assassinas. E eras como o pastor no meio do teu rebanho de casas humildes, a cabeleira verde agitada ao vento do Atlântico como uma bandeira. Oitizeiro velho, conhecias tôda a gente e tôda a gente te conhecia. Devia ser no teu tronco rugoso que o famigerado Padre Verdeixa amarrava o cavalo, quando ia em voz alta insultar, debaixo das sacadas do Palácio, o Presidente padre José Martiniano de Alencar. E’ possível que certa noite se tivesse agitado a ramaria àtrepidação do estrondo do bacamarte que matou o major Facundo. Decerto tuas fôlhas mais altas presenciaram por cima dos telhados o enforcamento dos réus no largo à entrada do desaparecido beco do Cotovêlo.
Durante muitos anos, a melhor escola da cidade funcionou na tua vizinhança, em frente do antigo Quartel de Polícia. Escutavas, recolhido, a monótona cantilena dos meninos decorando a cartilha e a tabuada. E, quando os bolos da palmatória estalavam e os lamentos cortavam o ar, não sabias se era o decurião que castigava os alunos vadios, ou se era o delegado que mandava corrigir os escravos fugidos, os bêbedos, os vagabundos, os ladrões ou as rameiras. A cidade que viste nascer fêz-se moça e tornou-se mulher. Em lugar das barrigudas casas de taipa, alevantaram-se sobrados. O arrôjo dos primeiros arranha-céus de cimento armado espantou a tua altura vigorosa. Os automóveis, fonfonantes, reclamavam tua queda, porque lhes estorvavas a velocidade, tu que conhecias uma por uma as velhas traquitanas de magras pielas, alugadas pelo Golignac, mais velho do que elas. Não houve voz, pedido ou protesto que te salvassem. Condenaram-te à morte. E tu, que perderas a grade protetora, posta pela bondosa Câmara Municipal de 1877, que fôras amputado várias vêzes por estorvares as platibandas dos prédios próximos, desenraizado brutalmente, cortado e recortado em achas, acabaste como lenha oferecida pela nova edilidade às cozinhas da Santa Casa. Mais nobre e útil do que os que te derrubaram, morreste dando o teu corpo para ferver a sopa dos enfermos e dos pobres. No século XVIII, o povo revoltava-se para salvar um cajueiro. No século XX, os povos não se revoltam mais por causa duma árvore que viveu com êles. .. Os povos aos poucos perderam a alma.”
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Fortaleza de 1858! Como eras encantadora, na tua modéstia e na tua simplicidade deliciosamente colonial. Já tinhas comoventes histórias para contar-nos, nesse tempo. . . E com que esplêndidos episódios sabias tecer as tuas narrativas feitas com o heroismo e com a bravura do teu povo.., da heróica e da brava gente cearense. Mais tarde, o poeta Paula Nei, teu filho dileto, em sonêto magistral, havia de evocar-te, emocionado, os olhos marejados de lágrimas, debruçado na amurada de um navio, vendo-te, distante, ao embarcar para a Côrte:
Ao longe, em brancas praias, embalada
Pelas ondas azuis dos verdes mares,
A Fortaleza, a loira desposada
Do sol, dormita à sombra dos palmares.
Raimundo de Menezes