Continuando...
Observamos a facilidade com que esses trabalhadores são
recebidos pelo presidente, prática coerente com o personalismo de Vargas e com
o trabalhismo.
Enquanto os cinco pescadores enfrentavam o mar e temporais
para chegar até a capital federal, o mesmo José Pinto Pereira, o escolhido para
assumir a Delegacia de Caça e Pesca, viaja novamente ao RJ e cerca o presidente
e seu ministro no Palácio do Catete.
Por três vezes consegue chegar até Vargas e, segundo
acentua o jornal, não consegue chegar perto de seu Ministro da Agricultura. Na
terceira vez, se misturando a um grupo de estivadores que estavam em audiência
com o presidente, travou com esse o seguinte diálogo:
Vargas, espantado, perguntou ao pescador: _“Você ainda está
por aqui?
Então, o que resolveu?” Ao que José Pinto Pereira
respondeu: _”Pois é,
Presidente, a verdade é que ainda estou esperando. Já
estive mais de dez vezes no Ministério e ainda não pude falar com o Ministro. O
meu dinheiro está se acabando e eu acho que vou me embora.”
Se, no contexto de
1941, Vargas e sua equipe receberam os jangadeiros em uma audiência pública,
ocasião em que mandou abrir os portões de sua residência oficial, o Palácio
Guanabara, em dezembro de 1951, encontrou os jangadeiros em uma audiência privada.
Do Rio de Janeiro, os jangadeiros seguem até o Rio Grande
do Sul, revelando aos jornalistas o desejo de conhecer São Borja, terra do
Presidente Vargas. Ao governador Dorneles Vargas, primo do presidente, entregam
um memorial, e seguem cumprindo uma agenda de visitas e festividades promovidas
entusiasticamente pelos gaúchos.
Em tom de desafio, Mestre Jerônimo revela, orgulhoso, a um jornalista do Rio Grande do
Sul que o próximo destino de uma jangada cearense seria os Estados Unidos da
América.
De volta ao Ceará, os tripulantes da Nossa Senhora de
Assunção se envolvem com a criação do Sindicato dos Pescadores do Ceará, uma
das ações do Estado resultante do acerto de contas por ocasião da viagem.
O
presidente substitui o titular da Delegacia de Caça e Pesca no Estado não pelo
pescador José Pinto Pereira, alvo de boatos de ter ligação com o Partido
Comunista, mas por Stênio Azevedo, um velho amigo dos pescadores, um “amigo
graúdo”, é certo, um dos apoiadores do raid de 1951.
Também acompanham a
execução do “plano completo de amparo aos pescadores e regulamentação das
respectivas profissões”, que previa, além da sindicalização, o fornecimento de
jangadas aos pescadores. O tal plano devia beneficiar Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
É certo que o elemento impulsionador dessas viagens,
ocorridas em 1941 e 1951, é o conhecimento e mesmo a certeza da via direta de
entendimento com representantes do governo brasileiro, em especial com o
próprio presidente da República.
Se Jerônimo e seus companheiros se mostram
cansados das promessas, eles ainda demonstram fôlego e confiança nessa via, e
apostam nela. Isso faz parte dos ganhos simbólicos dessas viagens que considero
de suma importância, especialmente, no fortalecimento da identidade do
jangadeiro, dando sinais de reciprocidade na ação do Estado, conferindo aos
“porta-vozes”, quatro em 1941 e cinco em 1951, uma legitimidade.
Ser recebido pelo presidente, ficar “ombro a ombro com
ele”, como disse Jacaré em 1941, não é pouca coisa.
A liderança política da jangada é transferida para o mestre
técnico da embarcação. Na primeira viagem, Jerônimo quase não se manifesta, não
usa o microfone nem uma vez, somente em algumas passagens dá algum depoimento.
Com a morte de Jacaré, como que por um compromisso moral, é ele quem lidera o
grupo, falando aos jornalistas, discursando, tratando com o governador do
Ceará, com o presidente da República, enfim...
No começo da década
de 1950, a imprensa ainda se mostra sensível à causa dos populares, se
colocando como amplificador de suas demandas.
Os jangadeiros recorrem com frequência
a essa via e as viagens não teriam sentido sem a visibilidade proporcionada
pelas matérias estampadas nas folhas de jornal de todo o país.
Na viagem de 1951, outro meio de comunicação é bastante
mobilizado, inclusive para dar informações sobre o paradeiro dos pescadores;
refiro-me ao Rádio Amador.
Os jangadeiros permanecem se valendo de uma dupla
estratégia de ação política, combinando-a e acionando-a em momentos que lhes
parecem convenientes. Falo da ação de reverência/homenagem e na ação de
contestação/protesto.
Em 1941, em virtude do contexto político, dando provas da
negociação da realidade que se opera, o tom de reverência sobressai e é o mais
acionado, não tendo consequência o abafamento da contestação.
Jacaré disse a um
jornalista do RJ que falou tudo o que queria.
De fato a repercussão política do raid de 1941 foi grande e
as denúncias sérias. A escolha do
roteiro Fortaleza-Rio Grande do Sul pode ser entendida como representativa da
ação de reverência, era uma homenagem ao velho amigo dos pescadores, que
queriam conhecer e tocar a terra do Presidente.
Nesse sentido, participaram de
um churrasco na Fazenda Itu, de propriedade do Presidente, e declararam aos
jornalistas a disposição de ir até São Borja. Mas não deixaram que suas ações,
a viagem arriscada, fossem valorizadas apenas do ponto de vista do feito
esportivo.
Em várias ocasiões, Jerônimo tomava para si a palavra e
ressaltava os fins políticos que os moviam.
A vida os obrigava a ser herói,
como revelou, mas o que queriam mesmo eram melhores condições de vida para a
classe.
Na viagem de 1941, a
rede paternalista que cercava os pescadores foi fartamente mobilizada; na de
1951, ela ficou bem mais restrita. Nada de padrinhos, foi outra lição tirada da
viagem de 1941. A viagem
de 1941 foi um momento importante no aprendizado de classe. Jacaré declarou aos
jornalistas que pensava que ia falar em nome dos pescadores do Ceará, mas, ao percorrer
o litoral brasileiro e topar com outros “irmãos de palhoça e de sofrimento”, entendeu
que falava em nome dos “Pescadores do Norte”.
Na fala de Jerônimo e dentro das condições de possibilidade
dos anos de 1950, era a “classe” que ele e seus companheiros representavam. Não
iam mais “pedir direitos” e sim “cobrar” as promessas feitas.
Com a morte do Presidente Vargas, foram silenciadas as
vozes dos “pescadores do Norte”?
A pergunta vai ficar, pelo menos por enquanto, sem
resposta. Ao invés de respondê-la, informo ao leitor que, em 1958, nas águas
desenvolvimentistas do período JK, ainda tremulava a vela de uma jangada, rumo,
não aos Estados Unidos, mas a Buenos Aires. O nome da jangada, estampada na
branca vela, não era mais a de um santo, mas sim outra homenagem aos
trabalhistas: Maria Tereza Goulart, nome da esposa do Vice-presidente João
Goulart – um “amigo do presidente Vargas”, como disse um dos tripulantes dessa
jangada, o pescador Zé de Lima*.
Berenice Abreu de Castro Neves
Fim
*O jornalista Raimundo Caruso entrevistou o pescador Zé de
Lima, que viajou juntamente com Mestre Jerônimo até Buenos Aires em 1958. Cf.
CARUSO, Raimundo C. Aventuras dos Jangadeiros do Nordeste. Florianópolis: Panan
Ed. Culturais, 2004.
Crédito: Berenice Abreu de Castro Neves (Os jangadeiros de Vargas: Reflexões acerca das viagens reivindicatórias de jangadeiros cearenses)