Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

quinta-feira, 16 de março de 2017

Raimundo Varão - Por Otacílio de Azevedo



O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado, a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol, com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês... 
Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica. 
Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas, olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo. Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que, nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los com seu nome, para não lhes macular a alvura. 
No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...


Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava! 
Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que "seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela primeira vez, se apaixonara! 


Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc. 
Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram iguaizinhos aos meus! 

Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso, porque seu único alimento era bolachinhas Jacob* e cerveja... 

Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom, meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos... 


Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle Ibis": 


Quando a vejo passar, franzina e leve, 
mais delicada e frágil que as verbenas, 
penso que aquele traje ocultar deve 
a rainha grácil das açucenas. 

Lírios, pérolas, lânguidas falenas, 
rubis, Papoulas, flóculos de neve,
vêm nos trazer um fraco esboço apenas 
do conjunto ideal da boca breve... 


Dos seus olhos, mais puros que as estrelas, 
a luz auroreal nos vêm falando 
de cousas que é impossível concebê-las... 

E quando passa, a rir, entre cortejos, 
parece uma ilusão que vai boiando 
num oceano de sonhos e desejos! 

Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas decassílabos: 


UM SONETO D' AMOR 

Anjo, mulher, demônio a quem venero, 
sombra que amaldiçoo e que bendigo, 
luz de meus olhos, infernal perigo, 
causa de meu eterno desespero! 

Se procuro esquecer-te é que mais quero 
dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo, 
e concentrando as lágrimas comigo 
as minhas próprias carnes dilacero... 

Do meu profundo amor sempre a falar-te 
encontrarás o espectro solitário 
disperso, a soluçar por toda a parte! 

E se em teu peito a compaixão não medra, 
eu irei pela senda do calvário 
arrancando um soluço a cada pedra! 

ALUCINADO 

Ardendo em chamas de infernal cratera, 
ao ver-te o corpo escultural, divino, 
sinto rugir-me n'alma uma pantera 
que ladra contra Deus e o meu destino... 

Tu és a flor em plena primavera 
eu sou o mendigo, o verme pequenino... 
Deixa rolar no abismo da quimera 
a paixão deste amor, que não domino. 

Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia, 
quando houveres baixado à campa fria, 
na febre dos desejos indomados, 

irei partindo o mármore das lousas,
visitar o mistério em que repousas
para beijar-te... os ossas descarnados!

Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:

O poeta é como a águia, anseia o infinito,
o olhar na luz da ideia eternamente fito,
desdenha o mundo vil e a existência ilusória,

e voa e cai e morre olhando o sol da glória



Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrí­nio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram... 

Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez houvesse desaparecido para todo o sempre. 
Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos, foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte? "Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta de A Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen, esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias. 



Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás, segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou . De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de sua única e velha calça, em petição de miséria... 

Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas haviam desaparecido! 

Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo, ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem, mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi, aterrorizado, quando criança. 
No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade, ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea, mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões, diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos e lhe beijar o pó das sandálias... 
Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado pela Mademoiselle Ibis: 


VISÃO NOTURNA 

Espairecendo incauta e descuidada 
à fraca luz da lâmpada indecisa, 
a cada passo um raio de alvorada 
ilumina o lugar onde ela pisa... 

Na mórbida indolência que desliza 
a sua forma clássica, esmerada, 
lembra um cisne de luar que se eteriza 
no mar de luz da esfera constelada. 

Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias 
fazendo recordar dos grandes sábios 
as cavernosas órbitas sombrias...

E as suas frases dúlcidas, singelas, 
cada palavra que lhe sai dos lábios, 
vou transcrevendo em sílabas de estrelas! 

Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga, quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha grande valor. 
Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta, em chorosa surdina... 
Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou nossa cidade: 


FORTALEZA 

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...



Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.

Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento po­ético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adá­gios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça1992, uma memória histórica de nossa cidade.
Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra




* De acordo com minha amiga Isabel Pires, que foi quem conseguiu a foto da caixa das bolachas Jacob, a marca era Irlandesa e curiosamente,  vendida nas mercearias da antiga Fortaleza.


Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Raimundo Varão - Figura excêntrica que fez parte do cotidiano de Fortaleza



Em Fortaleza, durante os anos de 1911 e 1915, viveu um homem estranho, que ninguém sabia de onde tinha vindo, se do Rio de Janeiro, Piauí ou São Paulo*. De acordo com as beatas da época, que juravam de mãos postas, aquela criatura só podia ter emergido dos quintos dos Infernos. O poeta Otacílio de Azevedono seu livro “Fortaleza Descalça”, assim o descreveu: “… era alto, magérrimo, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos e profundos com olheiras cor de azinhavre. (…) Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (…) Um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas histórias de Trancoso”
Esse ser estranho, era ninguém mais, ninguém menos, que Raimundo Varão, tido como o mais excêntrico dos artistas cearenses. Era poeta e desenhista, tendo trabalhado no estúdio de fotografia do dinamarquês Niels Olsen.
Os cronistas do início do século XX, contam que o poeta não era nenhum pouco higiênico, mas lavava as mãos sempre que pegava em um livro. E que mesmo andando sujo e mal asseado, seus livros eram todos impecáveis, não possuindo um risco sequer, muito menos uma mancha em seu interior ou capa. 

A pensão onde o poeta Raimundo Varão morava, ficava na Rua Formosa, atual Barão do Rio Branco.

De acordo com o contista, cronista e poeta bissexto Newton Silva, Raimundo Varão parece que não se importava com a alcunha de filho do diabo ou que era o próprio diabo em pessoa, visto que ele próprio contribuía para aumentar os mexericos e falatórios em torno de si. E os boatos aumentavam a cada dia. Ateu, só usava roupas pretas, era extremamente pálido como um vampiro, não tomava banho, praticamente não comia nada além de cerveja com bolachas, tinha um odor fétido de defunto e de acordo com a "boca miúda", ainda criava na pensão em que morava, um sapo amarelo com o qual conversava e trocava carícias. Tudo isso, era sem dúvida, ótimos motivos para as bocas ávidas de histórias mirabolantes dos fofoqueiros daquela época. Certa feita, depois de uma interminável noite de bebedeira, o enigmático poeta terminou a farra na Praia Formosa (hoje Praia de Iracema), em meio a uma tempestade com raios e trovões. Raimundo Varão não se intimidou e berrava ensandecido aos Céus que Deus provasse a sua existência mandando um raio que o partisse ao meio, causando arrepios nos companheiros de boemia. 


A praia Formosa, palco das farras do poeta. Aqui um registro da praia nos anos 40. 
Arquivo Nacional


Varão adoecia frequentemente de fulminantes e efêmeros amores, paixões platônicas e arrebatadoras. Varava a noite insone a entoar cânticos febris para as moças recatadas e ingênuas dos sobrados. Os pais apavorados se apressavam a esconder as filhas, pois o diabo estava à solta e não dormia. O infame tinha uma predileção pela inocência das imagens das santas da Igreja Católica. Dizia que todas as santas eram belas e a candura de suas mãozinhas postas arrebatava o sacrílego. Apaixonou-se perdidamente pela imagem de Santa Teresa de Jesus que vira em uma igreja de Fortaleza e para ela deixou escrito o seguinte poema: 

Teresa de Jesus, lírio da Espanha 
A casta luz de teu olhar magoado 
Só me desperta a fantasia estranha 
Das misérias da carne e do pecado; 
Por ti, no fundo d’alma se me entranha 
Não sei que o amor brutal de alucinado… 

Vem do bando falaz das ilusões 
A despertar-me os lúbricos anseios. 
(possam curar-me d’alma as podridões 
teus olhos imortais de sonhos cheios) 
Surgindo dentre inúmeras visões 
O alabastro divino dos teus seios… 

Santa ou louca? O que foste não importa, 
Pois nada importa quando o amor brutal 
Nos dilacera, nos domina e corta 
Como a lâmina fria de um punhal; 
E mais se a nossa alma se conforta 
Nas venenosas brotações do mal? 

Ó poetisa gentil de membros lassos, 
Nesses loucos acessos de histerismo, 
Como deviam ser os teus abraços 
Repassados de doce magnetismo… 
Por ti, meu coração feito em pedaços 
Havia de rolar no eterno abismo! 

Se tu vivesses hoje e os meus desejos 
Pudesse saciar no amor profundo, 
A volúpia infernal dos nossos beijos 
Abrasaria o coração do mundo… 


O poeta, historiador e membro da Academia Cearense de Letras, Juarez Leitão, escreveu sobre o "diabo" que havia morado na Capital cearense para a Revista Singular. Dono de uma fluência imaginativa de narrador de causos, o poeta foi rápido na ação de pesquisador da memória fortalezense:

 “Nas minhas entrevistas com as pessoas de idade, tentando reconstituir a memória oral da cidade, encontrei em três ou quatro ocasiões, referências a um homem que era o diabo. Essas alusões partiam de octogenários, geralmente mulheres, que antecediam seus relatos com um “meu pai contava” ou “minha mãe falava”. Eram lembranças terríveis, vindas da infância, sobre um homem estranho que aparecera em Fortaleza, todo de preto, com seis dedos em cada mão, que tinha parte com o diabo. Essa assustadora figura misturava-se a manjaléus e bichos-papões no afã terrorista das mães e babás de outrora para fazerem as crianças dormir mais cedo ou para que comessem os mingaus e papinhas sem demora. 



Sempre que ouvi referências à estranha figura do homem de seis dedos, ligava-as ao depoimento do poeta Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça” sobre Raimundo Varão: “Era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos, com olheiras cor de azinhavre. (...)”. Varão era um artista, poeta primoroso. Trabalhava na Fotografia Olsen, tendo como colegas de trabalho os irmãos Júlio e Otacílio de Azevedo e Herman Lima, que depois seria contista famoso e memorialista. 
Raimundo Varão marcou Fortaleza no começo do século XX por seu comportamento estranho e original e aqui produziu sua arte. Se o povo falava que ele era o diabo, ou seu missionário nesta terra, era porque o próprio Varão contribuía para isso. Imaginem um sujeito alto numa terra de baixinhos, olhos fundos, olheiras roxas, extremamente pálido, vivendo sem tomar banho e, além do mais, criando um sapo?! O soturno personagem praticamente não comia. A roupa acabava-se no corpo, e o fato de ser preta disfarçava-lhe a sujeira. Não o odor. Fedia, alguns diziam que a enxofre, que é o cheiro de satã. Tinha o comportamento daqueles poetas do ultra-romantismo, vivendo paixões unilaterais e arrebatadoras por musas inalcançáveis. Possuído da contradição dos desesperados, falava assim para uma delas: Anjo, mulher, demônio a quem venero, sombra que amaldiçoo e que bendigo, Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa de meu eterno desespero. 
O poeta viveu em Fortaleza entre 1911 e 1915. Dizem que foi embora para o Rio de Janeiro. De onde vivia mandou, tempos depois, para ser publicado na imprensa do Ceará, um belo soneto sobre Fortaleza. Era a saudade desta boa terra onde até os mefistofélicos se dão bem”.  

Soneto sobre Fortaleza (Raimundo Varão):

Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
Lá fulge a legendária Fortaleza, 
Como um raro brilhante sobre a Terra. 

Como um sacro penhor da Natureza, 
Como um beijo auroral que a vida encerra, 
Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

Porque nos batem temporais medonhos 
E tivemos no mundo a mesma sorte, 
Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
Meu derradeiro e desvelado anseio 
É ter a paz na comunhão da Morte, 
Dormindo em sete palmos do teu seio...

*Dolor Barreira escreveu: "Raimundo Varão não era cearense, mas natural do Piauí, segundo estou informado."
Otacílio de Azevedo, porém, costumava dizer que ele era paulista, o que era confirmado por Luís de Castro.
Importante salientar que, Dolor Barreira, com seu admirável senso de justiça, compreendeu que, não obstante o fato de haver nascido fora do Ceará, tendo mesmo vivido aqui durante poucos anos, Raimundo Varão pode e deve figurar na história de nossas letras, razão por que fez questão de reunir, em sua História da Literatura Cearense, o maior número possível de composições de sua autoria. 


Revista Singular/ Jornal da Besta Fubana/ Newton Silva / BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza, A. Batista Fontenele, v. 3, 1954, p. 45.

terça-feira, 7 de março de 2017

As lojas na Fortaleza da década de 40




Nos idos da década de 40, os proprietários das grandes lojas não se preocupavam em camuflar (ainda bem!) as fachadas das lojas, com vergonha de estarem ocupando prédios antigos, nem tinham, ainda, descoberto a técnica de rebaixar os tetos dos salões, diminuindo o pé-direito dos mesmos e diminuindo, também, consequentemente, a ventilação. Os donos e administradores das lojas de Fortaleza preocupavam-se, principalmente, em apresentar mercadorias de alta qualidade, vendedores educados e asseados e vitrinas de alto nível, melhor veículo promotor de vendas. 
Hoje, infelizmente, quase não se consegue observar os antigos prédios ocupados pelas lojas, visto a quantidade de tapumes que são usados para encobrir o "velho". :(



Naqueles tempos, sem as indústrias de confecções dos nossos dias, que oferecem ao cliente a roupa prontinha, ao gosto de cada um, predominava, na cidade, o comércio de tecidos, obrigando as pessoas a adquirirem as fazendas necessitadas e levá-las à costureira ou alfaiates, conforme o caso ou o sexo. Por isso, as lojas de tecidos ou casas de fazendas, como eram mais conhecidas, tinham esmero em suas vitrinas, caprichavam nos "vestidos" de suas bonecas-manequins que eram montadas por verdadeiros mestres na arte de modelar as roupas, usando apenas o tecido e alguns alfinetes, sem ser necessário cortar pano nem utilizar linha ou agulha. 
A Casa Plácido, do comerciante milionário Plácido de Carvalho, na rua Major Facundo, ao lado do Excelsior Hotel. Comerciava produtos europeus: tecidos, confecções masculinas e femininas, perfumes, móveis, luminárias, leques, louças, cristais e pratarias. Durante a Primeira Grande Guerra, quando a Europa ficou carente de tudo, Plácido, que tinha armazéns abarrotados, revendeu tudo o que o velho mundo necessitava. A preços elevadíssimos.

A expressão Casa, certamente, seria a influência francesa Maison. Quanto à denominação armazém, tão grosseira e desprovida de it só surgiu na década seguinte, quando a cidade começou a perder seu encanto, seu refinamento, seu "chiquê", consequência das violentas secas que se abateram sobre o sertão, despejando milhares de flagelados famintos em nossa capital, originando as favelas, a profusão de mendigos, gerando, enfim, uma nova condição social que  modificou, radicalmente, os costumes da nossa urbe.
Loja A Cearense na rua Barão do Rio Branco. Arquivo Nirez

As principais casas de tecidos na Fortaleza dos anos 40 eram: A Cearense, de Aprígio Coelho de Araújo, localizada no meio do Chamado Quarteirão Sucesso, na rua Barão do Rio Branco. Aprígio, homem de larga visão e de muito bom gosto, mandou construir sua loja inspirado nas grandes maisons parisienses: gigantesco salão, bastante requintado, com ambientes de espera e nichos iluminados para exposições de peças finas. Ao fundo, uma elegante escada em  forma de leque se bifurcava e dava acesso aos salões dos dois andares superiores que tinham imensas rodas vazadas como visores emoldurados por belos gradis de ferro. De linhas art déco, como era comum às lojas chiques daquele tempo, sua frente era rigorosamente simétrica, com duas vastas vitrinas laterais e muitos manequins artisticamente vestidos.

Loja Broadway na "esquina do pecado", ao lado do Excelsior Hotel em 1953. Acervo Lucas Jr. Foto do jornal Gazeta de Notícias
Uma loja que, embora bem menor em instalações, possuía, talvez mercê de seu nome, incrível fascínio na cidade, era a Broadway, de Alberto Bardawill, na esquina famosa das ruas Major Facundo e Guilherme Rocha. Tinha duas vitrinas, uma em cada rua e era o próprio Bardawill quem montava as vitrinas e "vestia" as bonecas-manequins. A casa não tinha maiores atrativos em decoração, porém só trabalhava com tecidos de alta classe e sua clientela, a exemplo de A Cearense, era de primeira linha. Sua fama maior veio do forte vento que soprava constantemente na sua esquina, levantando as saias das moças e  provocando ajuntamento de rapazes, o que deu origem ao epíteto de "esquina do pecado". Aquele vento seria originado pelos altos tapumes da construção do Cine São Luiz que não permitiam a sua passagem pelas galerias laterais obstruídas.
A loja tinha o slogan: “Rianil, a loja azul da Floriano Peixoto”

A Rianil, localizada na rua Floriano Peixoto, entre as travessas São Paulo e Pará, tinha, sem favor, as mais bem arquitetadas vitrinas de tecidos da cidade. Seu vitrinista, verdadeiro artista, fazia trabalhos maravilhosos com as fazendas e as bonecas-manequins. Estas,  eram tão bem "vestidas" que se podia jurar que eram vestidos de verdade, cortados e costurados. Essa loja era toda azul, devido ao nome Rianil, originado de rio Anil, no Maranhão, em cuja capital, São Luís, estava a matriz daquela loja.
A Ceará Chic, no extremo sul da Praça do Ferreira, também tinha vitrinas bem elaboradas, com bonecas muito bem vestidas, e só trabalhava com fazendas de alta qualidade. A sua  vizinha, Rainha da Moda, na esquina e defronte ao Cine Moderno, também vendia tecidos, embora fosse especializada, igualmente, em bolsas, sombrinhas e outros acessórios.


Na esquina das ruas Barão do Rio Branco e Guilherme Rocha ficava As Duas Américas, de Pedro Coelho de Araújo, irmão de Aprígio (já citado). Não era uma loja de luxo, mas era bastante simpática. Tinha apenas uma vitrina, na quina. Não possuía manequins, que eram detalhes de alto requinte naqueles tempos. Já na década de 50, mudou de ramo, passando a ser casa de merendas, para fazer concorrência à Sorveteria Variedades. Com o nome de Cabana fez sucesso durante vários anos, sempre do mesmo proprietário da loja As Duas Américas.

Reclames de 1932 no Jornal Nação

A Casa Ouvidor localizava-se na rua Floriano Peixoto, vizinha à Livraria Comercial. Era uma loja simples, não tinha vitrinas, apenas uma só boneca-manequim colocada sobre um balcão.


Na rua Major Facundo, quase esquina com a travessa Liberato Barroso, tinha a Casa Londres, outra loja sem maiores pretensões, não obstante o nome pomposo. Não tinha vitrinas nem manequins.

Curiosa era a Casa Vênus, na rua Floriano Peixoto, local atualmente ocupado pelo Edifício Sul América. Era uma loja de porte médio e o seu detalhe interessante era uma boneca-manequim que ficava numa das duas vitrinas.  
Esse manequim chamava tanto a atenção do escritor, que ele escreveu:"Eu tinha fascínio pela mesma, pois, sendo menino, ficava a contemplá-la, uma vez que nunca vira, antes, manequim daquele tamanho.
Teria, se muito, meio metro de altura e formas de mulher, linda, com olhos azuis, de vidro. Estava sempre de vestido novo, na moda. Parece que o dono daquela loja tinha carinho especial por ela. Nunca mais vi outra peça semelhante, em nenhuma das cidades por onde andei."

A Granfina também ficava no Quarteirão Sucesso, no local onde está, atualmente, a Casa Pio. Era uma loja feia e sem qualquer atrativo, malcuidada, mal arrumada e de aparência suja. Tinha estoque reduzidíssimo de mercadorias e, para piorar a imagem, exibia um horroroso manequim, "choroso" e extremamente "anêmico". Nunca se via qualquer cliente ali e acho que fechou por falência. Sua vizinha era a Casa Armênia, de seu Carlos Fermanian, genitor do genial músico e regente Vasquen Fermanian. A Loja era um pouco melhor do que A Granfina, porém, sem ser chic, sem ter atrativos.

A esquina do pecado

De linha bem popular, mas badaladíssimas, eram as Casas Novas, de Gutemberg Telles. Se não estou enganado, eram três lojas, localizadas nas ruas Major Facundo e Floriano Peixoto, na confluência dos Correios e Telégrafos. Patrocinavam o programa de José Limaverde "Coisas que o tempo levou", apresentado pela PRE-9, nas noites das segundas-feira. Seu proprietário tinha noções da moderna propaganda, usava faixas e panfletos, além de "pregões" nas calçadas, atraindo os fregueses para o interior das lojas.

Ao lado do prédio dos Correios e Telégrafos, na rua Floriano Peixoto, estava a Casablanca, outra loja de linha popular e muito procurada pois tinha fama de vender mais barato do que as concorrentes. Possuía grandes instalações, sem o mínimo de luxo, mas apresentava movimento constante. De todas as lojas de tecidos existentes na década de 40, foi a única que sobreviveu. Cresceu e formou uma cadeia de lojas, grande centro comercial na Aldeota e já envereda por outros ramos de atividades, prova do dinamismo e tenacidade de seus dirigentes.

Casa Blanca - A sobrevivente

Com exceção da Casablanca, as lojas da década de 40 fecharam suas portas e hoje constam apenas em alguns livros sobre a cidade amada e nas histórias dos mais velhos...

"Todas as demais lojas dos meus tempos de menino e adolescente desapareceram e, hoje, são apenas saudade. Algumas, pelo chic, pelo carisma que possuíam, outras, pela simpatia e singeleza de suas promoções de vendas, numa época em que a publicidade era puro artesanato, sem as sofisticações do marketing de hoje." 

Marciano Lopes




Créditos: Livro Royal Briar - Marciano Lopes/Portal da História do Ceará/Biblioteca Nacional/Arquivo Nirez/ Revista Bataclan 

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