Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Bar do Anísio

Anísio fazia as vezes de garçom, cozinheiro,
cobrador, jogador de cartas e, principalmente, pai. Além dos cinco filhos biológicos, assumiu a paternidade de um sem número de jovens que iam diariamente ao bar, o qual também era a casa de Anísio, em busca de um espaço acolhedor e libertário.

Eu reconheço pela praia. Se eu for andando pela praia, eu sou capaz de saber: o Anísio era ali. Mas, se eu for olhando pelos prédios, eu não sei.
Fausto Nilo

 
Eu vejo aquele pé de oiti e é a minha referência. Lembro-me muito bem de que a gente sentava no Anísio e o pé de oiti estava um pouco à esquerda. Pé de oiti grande que ainda está lá.
Flávio Torres




É exatamente... Hoje, tem o Edifício Trapiche no lugar onde era o Restaurante Trapiche. Se você estiver olhando para o mar, ele ficava logo à esquerda desse prédio.
Guto Benevides

No estacionamento do Edifício Scala. A entrada do estacionamento era a entrada da casa. É tanto que tem uma árvore na frente que é a história da gente.
Nísia Muniz (filha de Anísio)

Sabe onde tem o Scala? Era por ali. Tem um transformador grande da Coelce. Era ali colado na casa dele.
Rodger Rogério




Era o ano de 1958. A cidade de Fortaleza começava a deixar antigos costumes para tornar-se grande, ampliando as fronteiras do Centro em direção ao mar. O Porto do Mucuripe comemorava o quinto aniversário da atracação do navio Vapor Bahia – a primeira de muitas. O Iate Clube completava quatro anos de vida e festas. Iniciava-se um período de movimentação na Beira-Mar. A região, antes vista com preconceito, povoada por pescadores e prostitutas, passou a ser visitada pela alta sociedade, que se hospedava em pequenas casinhas na areia durante as férias.



Foi nessa Beira-Mar em construção, mistura de casas de veraneio e jangadas, que a família Muniz escolheu morar. No final da década de 1950, Anísio Muniz de Souza e a esposa, Maria Augusta Pessoa Muniz (dona Augusta), tinham quatro filhos. Nísia, caçula na época, tinha apenas dois anos e uma recente coqueluche. Para que a menina ficasse boa logo, a prescrição do médico foi categórica: pelo menos um banho de mar ao dia. Anísio passou a visitar diariamente o irmão Cristovão, que morava na Beira-Mar havia algum tempo, como desculpa para acelerar a cura da filha.

As idas, porém, tornaram-se cansativas. Sair do bairro Parque Araxá para ir à praia era quase uma viagem diária. Anísio ainda trabalhava como ascensorista do Edifício Diogo, o que tornava a viagem mais longa: da casa no Parque Araxá à Beira-Mar, da Beira-Mar ao Centro, do Centro à casa novamente. Todo o percurso sem carro. Mas Nísia
melhorava aos pouquinhos e deixar de levá-la para banhar-se no mar não era alternativa. Os pais decidiram, então, mudar-se para uma casa próxima à de Cristovão e morar na beira da praia.



Em pouco tempo, a coqueluche deixou o corpo de Nísia, e a vida no novo bairro tornou-se prazerosa para a família. O mar perto de casa, a maresia entrando sem pedir licença, vizinhos que se convertiam em amigos. Entre eles, donos daquelas casas de veraneio. Homens que durante a semana também frequentavam o Edifício Diogo a negócios.

– Bom dia, seu Anísio. Vou pro terceiro andar. O senhor está morando na Beira-Mar agora, né? Eu costumo passar as férias lá, com minha família! O que faz falta é um lugarzinho bom para comer por ali, viu? A sua esposa cozinha bem, não é? Já ouvi maravilhas da comida dela! Por que vocês não começam a vender uns salgadinhos por ali? Garanto que eu e muitos amigos iríamos! Vou ficando por aqui, Anísio. Bom dia!


Dona Augusta, que adorava cozinhar e o fazia com maestria, gostou da ideia. A venda de alguns pratos certamente ajudaria na renda familiar. Começou fazendo croquete. A cabeça de lagosta, dispensada pelos pescadores que só aproveitavam a cauda, servia maravilhosamente para rechear o salgadinho feito com esmero por Augusta. Tapioca,
café e água de coco também compunham o cardápio da cozinheira.
Os amigos do Edifício Diogo passaram a visitar o Anísio. Sentavam-se na varanda da casa e deliciavam-se com os quitutes de dona Augusta. 



Um dia, entre uma mordida e outra na tapioca com manteiga, o amigo Valdir Peixoto pediu: 

“Anísio, bota uma cervejinha quando a gente vier aqui”

O pedido era pertinente. O movimento estava crescendo e gerando até certo lucro para a família, que agora contava com uma nova integrante: Maria da Graça, a caçula. Vender cerveja com certeza atrairia mais clientela ao local. Havia apenas um empecilho: a família não tinha uma geladeira apropriada para colocar a bebida.

– Não tem problema! Eu compro a geladeira e trago os amigos. – disse Valdir.
Em 1961, junto com a pequena Graça, nascia o bar e restaurante O Anísio – Peixada – popularmente conhecido como Bar do Anísio. Algumas mesas de madeira na varanda da casa, com chão de tijolo vermelho. Era ali que os amigos se reuniam para conversar, comer e agora beber uma cervejinha gelada, com vista privilegiada para o mar.




O início dos anos 1960 foi também o início da gestão de Parsifal Barroso. Durante o mandato do governador do Ceará (1960-1963), o arquiteto Hélio Modesto foi contratado para elaborar o Plano Diretor de Fortaleza. Nele, estava prevista a construção de um sistema viário que conectaria as diversas regiões da cidade. O projeto não teve continuidade, a não ser pela pavimentação da Avenida Beira-Mar. Responsável por ligar a região do Mucuripe à Barra do Ceará, a via foi construida com investimentos dos setores público e privado.
Assim, iniciava-se a urbanização da Beira-Mar, que mudaria por completo a paisagem e a história da cidade. O imenso areal, cheio de casinhas de taipa, foi ocupado por máquinas e trabalhadores. A obra, feita em etapas, durou cerca de cinco anos. A avenida foi inaugurada
em 1965, convidando os fortalezenses a colorirem a beira da praia com seus fuscas.





Bar que também era casa

O Bar do Anísio ficava na parte da frente da casa. Na cozinha, dona Augusta fazia delícias gastronômicas para os fregueses e também as refeições da família. “Da cozinha pra frente, era o bar. Para trás, era a casa. Mas a nossa casa era tudo, porque a gente vivia mais no bar do que na casa”, rememora Nísia.


Os limites de público e privado eram nebulosos, quase inexistentes. Se para Nísia e os demais filhos de Anísio o bar também era a casa, para os frequentadores assíduos não era muito diferente. A sensação era a de estar em casa.



A intimidade com os donos era tanta que, muitas vezes, Anísio ia dormir e deixava o bar aberto. Em vez de expulsar a garotada, dava boa noite, pedia para separarem as cervejas que bebessem no canto e voltassem no dia seguinte para pagar. “Ele deixava o cadeado, a gente fechava o bar e no outro dia ia lá pagar”, lembra Flávio.

"Se um passasse mal, dormia por lá, sabe? Eles botavam uma rede nos coqueiros lá do outro lado. Aquele que capotava dormia e acordava de manhã com o Sol na cara." (risos) (Annuzia)
 

Sempre que alguém bebia além da conta, Anísio e Augusta cuidavam para que ninguém voltasse para casa dirigindo. Por isso, no quintal dos fundos, tinha uma rede preparada para receber quem precisasse dormir um pouquinho antes de pegar no carro. Alguns grupos tinham certa prioridade em relação aos demais. Fausto, Flávio, Rodger, Augusto, Annuzia, Maria Zélia e Marisa eram alguns dos jovens que sempre teriam vaga na redinha.



Tinham uns que a mamãe e o papai adotavam. Quando estava bêbado, ela
pegava a chave (do carro), guardava e não deixava sair de jeito nenhum. Não
eram fregueses, era gente da família. É tanto que todo mundo chamava ela (Augusta) de mãezona, de tia.
(Nísia)


As histórias que aconteceram ali são inúmeras. Muitas se perderam no tempo e na memória dos que viveram o bar. Outras, porém, permanecem guardadas na lembrança, inesquecíveis. Como o dia em que Rodger provou do chá de zabumba, grande novidade na época que
prometia alucinações.
 

Um dia, chegou um grupo de rapazes mais jovens no bar, comentando sobre a bebida. “Eu fiquei mangando deles: ‘Isso faz nada, rapaz! Adianta nada! Aí (eles disseram:) ‘Pois bebe!’. Aí eu bebi um bocado”, conta Rodger. Flávio recorda que, às três horas da manhã, neguim (como chama carinhosamente o amigo Rodger) atravessou a rua e foi para o lado da praia – em frente ao Bar do Anísio e ao lado do pé de oiti – experimentar o tal do chá.



Aí pronto. Não tinha quem fizesse ele voltar pra rua. O neguim lá sozinho, abraçado com esse pé de oiti. (risos) E não vinha, não vinha. O Rodger, com medo, disse que a rua era um buraco. Agarrado no pé de oiti e a gente arrastando. Um negócio doido essa zabumba. (Flávio)
(muitos risos) Não foi bem assim. Eu fiquei louco, completamente louco. Eu queria atravessar a rua, mas não conseguia, porque a rua ficou como se fosse água, ondulando. Os carros vinham e eu dizia que não conseguia passar com a rua ondulando daquele jeito. Eu não me agarrei ao pé de oiti, mas fiquei sentado do lado. (risos) (Rodger)

Rodger permaneceu do outro lado da rua até o dia clarear e ele se sentir “com forças” para deixar a companhia da árvore e atravessar a avenida. O pé de oiti era um grande (talvez o maior) espectador das noitadas do Anísio. Testemunha de todas as histórias do bar. A árvore
acompanhou o início de tudo, permaneceu de pé após a pavimentação da Beira-Mar e segue ali até hoje, guardando para si todas as histórias que presenciou.
 


Antes mesmo de Anísio mudar-se para o Mucuripe, a árvore já existia no mesmo local: em frente ao que se tornaria o bar, na fronteira da avenida com a praia. A diferença é que, antes de a família chegar à Beira-Mar, o oitizeiro ficava dentro de um terreno baldio rodeado de
lixo. Durante o calçamento da avenida, em 1960, esse pequeno monturo e diversas árvores também foram removidos – menos o oiti.

Ainda bem. Porque ela era muito linda. Linda, linda. A copa dela parecia um cabelo. O vento batia e ela se movia. É a única árvore que ficou ali. Lá em casa, tudo era ali (no oiti). Tomava-se café, botava-se a mesa lá. Aquele pé de oiti, se falasse, contava toda a história de tudo, de tudo! (Nísia)



Crédito: Livro Bar do Anísio - Casa de Liberdades de Isabela Bosi - 2012

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

O Pajeú vai despejar no...Poço da Draga

"O Riacho Pajeú, já nomeado Marajaik (devido a existência das palmeiras que ali cresciam), ou riacho das palmeiras, durante a invasão Holandesa, foi posteriormente chamado de Ipojuca e Riacho da Telha, antes de ser batizado com seu nome atual. Mesmo a grafia do nome atual mudou, de Pajehú, no início do século XIX para a moderna forma adotada nos primórdios do século XX.

Hoje o nome do riacho não aparece nas representações cartográficas de maior circulação, como guias turísticos ou mesmo o Google Maps. No Plano Diretor de Fortaleza apenas alguns trechos curtos do riacho são marcados e nomeados, ficando a maior parcela do curso d’água desassistida das leis. Também o curto trecho do Parque Pajeú vem assistindo à mudança de seu nome próprio. Há alguns anos, com a adoção do espaço pela Câmara dos Dirigentes Logistas, passou a ser mais popularmente conhecida como Praça da CDL."   (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)


Sempre que chove, alguns pontos da cidade vira um rio, mas o que muitas pessoas não imaginam, é que um riacho encontra-se sufocado, desmatado, impermeabilizado e em boa parte, enterrado em um jazigo de concreto. Aterraram o riacho Pajeú e hoje, a natureza só está cobrando o que é seu de direito!

“Cobertos e esquecidos, antigos cursos d’água ainda correm através da cidade, enterrados em grandes tubulações, canais primários de um sistema de drenagem subterrâneo. Seu ruído abafado pode ser ouvido sob as ruas após uma chuva pesada; eles são invisíveis, mas sua contribuição potencial às enchentes à jusante não é, todavia, diminuída, e sim, aumentada.”(Spirn, 1995)

"Em um dia de forte chuva, as memórias da cidade são ativadas. Memórias de rios, de várzeas, de mato, dos terrenos baldios e dos alagados… Aquilo que parecia uma simples lembrança distante de um córrego inofensivo, rebaixado, contido e invisibilizado, ganha com a pressão da chuva a fúria titânica de uma enxurrada.


 

O rio subterrâneo do inconsciente vence as forças que o aprisionaram num porão de concreto e irrompe na superfície. O rio recalcado retorna na forma de doença – a água podre do Pajeú é regurgitada dos bueiros, as bocas de lobo vomitam o rio e as ruas são tomadas pela enchente, lixo, ratos, baratas e toda a fauna que lhe restou.

E como acontece a cada forte chuva, reaparecem junto com o riacho as mesmas imagens de carros boiando, de ônibus-anfíbios, pessoas ilhadas em altas calçadas…"  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)





Em 1918, começaram a canalizar o rio para "ajudar" no crescimento da cidade. Esse crescimento sem limites e sem um bom planejamento, atingiu o espaço do manancial. Na administração de Lúcio Alcântara, 3.360,00 metros do Pajeú foi canalizado e seu leito modificado, seu curso desviado e sua fauna e flora perdidos. O que vemos hoje, em nada lembra o rio que observamos no mapa (primeira imagem), que abastecia a pequena vila que crescia próxima a sua margem. Como legado de sua gestão, Lúcio Alcântara entrega a 1ª etapa do Parque Pajeú, entre a rua Pinto Madeira e a Avenida DomManuel. As obras realizadas compreendiam a canalização do tipo canal aberto em pedra arrumada e canal fechado em concreto armado, o que equivale à cerca de 70% da extensão das margens do corpo hídrico.




O texto, encontrado em: FORTALEZA: Administração Lúcio Alcântara (março 1979/maio 1982), avalia ainda o resultado das obras e o "benefício" atingido, especialmente na Zona Central:

 […] notadamente nas áreas próximas ao Parque Cidade da criança, e da zona de comércio atacadista da avenida Conde D’Eu. Repercussão expressiva é o efeito obtido para a humanização da Zona Central, através da realização da obra de drenagem, integrada à implantação do Parque Pajeú e às reformas do Bosque do Paço Municipal. Altamente beneficiadas foram, também, as áreas marginais à Avenida Heráclito Graça, no trecho entre a Avenida Barão de Studart e a Rua João Cordeiro, e as áreas marginais à Rua João Carvalho, entre a Avenida Barão de Studart e Barão de Aracati. (FORTALEZA, 1982)

E comemora que infere-se ser da ordem de 31.775 habitantes a população diretamente beneficiada por esta realização, sendo a superfície drenada através destas obras de 456,70 hectares.




Os desvios do leito original que estranhamente parecem ser tão difíceis de precisar ficam esclarecidos nesse trecho:

 No trecho compreendido entre a avenida Dom Manuel e o Paço Municipal, as obras de canalização do Riacho foram feitas parte em canal aberto, de menor vazão, sobre o leito original e parte numa variante desse percurso original, em canal fechado que se desenvolveu sob trechos das Ruas 25 de Março e Costa Barros. […] (FORTALEZA, 1982)

O texto indica também que o Riacho foi desviado de seu leito original para a Avenida Alberto Nepomuceno, desenvolvendo-se em canal fechado a partir do ponto em que atinge essa Avenida até o mar, no Poço da Draga



Diante de tudo que já foi dito, não podemos deixar de mencionar o caso do Edifício Pajeú (notem a homenagem😟), da Firma Carneiro e Gentil, atual prédio do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, inaugurado em 1949 com pompas e bênçãos. Pois bem, os proprietários  já haviam canalizado o riacho em seu lote (enterrando o rio sob bela lápide do edifício), fato lamentado pelo Engenheiro civil e sanitário Alcy Leitão em matéria no Jornal O Nordeste (LEITÃO, 1955), não pelo rio em si, mas porque tais intervenções impossibilitariam, como ficou muito claro nos dias correntes, a limpeza do fundo de vale, incorrendo em obstruções ainda mais problemáticas por não terem sido os canais calculados para a “medida justa” e resultando em alagamentos.

Com o crescimento da cidade para a Aldeota, o riacho foi sendo, como previa Leitão, sepultado em cada lote individual.

E o riacho vai sumindo gradativamente ...


No  Poço da Draga fica a desembocadura do riacho no mar: uma área alagadiça drenada por vários anéis de concreto, donde uma réstia de mangue permanece.
"Dezenas de documentos cartográficos desde o século XVII até o início do século XX apresentam claramente o traçado do riacho Pajeú. São mapas de engenheiros holandeses, franceses, portugueses, ingleses…são cartas de navegação, levantamentos para fins de exploração de minérios, localizações exatas para fins de defesas, plantas para planejamento, planos para execução de portos, projetos para expansão urbana."  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)



"Até os primeiros anos do século passado, os documentos mostram claramente o ponto em que o corpo d’água, hoje canalizado e escondido, faz uma inflexão à esquerda, após a quadra onde hoje se encontra edificado o Mercado Central, passando em frente ao Fortede Nossa Senhora da Assunção e depois correndo em direção norte até a foz. É de se notar que nos mapas mais antigos o Forte era banhado pelo oceano e que a área onde se encontram hoje tanto a INACE quanto a comunidade do Poço da Draga foram conquistadas do mar durante algumas décadas.


Por outro lado, os mapas da segunda metade do século passado tratam de não representar o percurso completo do riacho, que já estava canalizado, e, em alguns pontos, subterrâneo. Eles silenciam o riacho em prol do desenvolvimento urbano. Assim, gradativamente o Pajeú desaparece nos mapas recentes. Desaparece das imagens dos mapas. Desaparece do imaginário. O riacho que até além de 1850 era essencial a manutenção da vida na cidade, durante o século passado vai sendo convertido em uma cloaca máxima."  (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)





"Já há algum tempo, alguns peritos, principalmente dos órgãos públicos e escritórios de planejamento, relatam uma certa controvérsia a respeito do trajeto e da localização da foz do riacho Pajeú. Essa controvérsia se deveria a falta de documentação para fundamentar qualquer alegação precisa em posse do Estado ou Município. Outros peritos ou intelectuais específicos vêm defender, com base num “rastro de vegetação”, a existência de um braço do Pajeú à direita da Av.Alberto Nepomuceno, de forma contrária a toda a documentação cartográfica ainda existente.





Se aceitarmos que o riacho mudou seu curso, podemos indagar que força geológica silenciosa e extraordinária poderia alterar a inflexão do riacho drasticamente em algumas décadas: segundo a teoria do Antropoceno, a era geológica atual seria caracterizada pelas modificações talvez irreversíveis que o homem provoca ao meio. (Cecília Andrade - Arquiteta e urbanista)

A INACE possui mapas antigos que apontam do estuário do Pajeú. É possível observar  a canalização que mudou o curso dessa foz para a continuação da Av. Alberto Nepomuceno, mais de cem metros à direita do trajeto natural do leito do riacho, bem no centro da planta da indústria e condizente com o mapa de drenagem da cidade de 1992. O "outro braço" do rio passa dentro da comunidade do Poço da Draga,  a 500 metros do leito original e escoa para o mar, por baixo de um dos galpões da empresa.
O riacho mudou-se completamente para o território da comunidade, baseado nesse novo discurso de verdade, ignorando quase quatro séculos de documentos.


Créditos: Cecília Andrade (Arquiteta e urbanista, mestranda em Artes pelo PPGArtes – UFC), Anne Whistorn Spirn - O Jardim de Granito. A natureza no desenho da cidade.
Tradução de Paulo Renato Mesquita Pellegrino. São Paulo: Edusp, 1995, Livro O Siara na rota dos Neerlandeses, de J. Terto de Amorim. Disponível
AQUI.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Arquitetura Neoclássica em Fortaleza - Parte I

Detalhe da Estação Central
O Neoclássico chegou ao Brasil em 1808, com a vinda da Família Real e a transmigração do Estado português para a cidade do Rio de Janeiro. Fortaleceu-se com a Missão Artística (1816) e a presença do arquiteto Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny, junto com seus discípulos Charles de Lavasseur e Louis Ueier. Logo, um considerável número de edificações Neoclássicas passou a compor a paisagem da cidade do Rio de Janeiro e daí se espalhou pela região Sudeste. Décadas depois, atingiu o Nordeste, chegando ao Ceará na segunda metade do século XX.

O momento da chegada da arquitetura Neoclássica ao Ceará coincidiu com o período do seu declínio na Europa, que vivia então outra febre: a da Belle Époque, cujo ecletismo arquitetônico absorveu o Neoclássico. No Ceará, coincidentemente, o Ecletismo (com o Neoclássico incluso) e a Belle Époque casaram-se com relativa harmonia em Fortaleza, entre as décadas finais do século XIX e as duas primeiras décadas do século XX, trazendo todo um novo estilo de se viver, que as elites locais prontamente abraçaram, determinando os novos rumos que a cidade tomou. 

Assembleia Provincial do Ceará, exemplo da arquitetura neoclássica - Álbum Vistas do Ceará 1908
Por que o Neoclássico se fez tão marcante, na arquitetura da cidade? Como eram as relações sociais de seus habitantes e destes com a Belle Époque, no momento em que se adotou o modelo Neoclássico e o Ecletismo? Como se deu a transformação do sítio geográfico inicial da cidade à condição de bairro? 

Assembleia Provincial de arquitetura neoclássica - Álbum Vistas do Ceará 1908

Centro Histórico da cidade de Fortaleza: origens e evolução espacial 


Centro no início da década de XX.
O núcleo embrionário do bairro Centro, se confunde com os fatos relativos à própria fundação da cidade no início do século XVII. Diferentemente da maioria dos estados brasileiros litorâneos, a ocupação do espaço cearense processou-se de forma bastante atrasada, uma vez que a região viu-se “abandonada” pelas autoridades portuguesas a começar pelo donatário Antônio Cardoso de Barros que mesmo tendo sido provedor-mor da Fazenda Real do primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, entre 1549 e 1553, sequer para a região mandou alguma expedição, preferindo investir capitais em engenhos na Bahia.
Jardim 7 de Setembro na Praça do Ferreira. (1902).
Detalhe das colunas Neoclássicas.
Fonte: Álbum de Vistas do Ceará, 1908
Somente, a partir de 1603, começou a existir algum interesse pelas terras cearenses, quando das expedições exploratórias de Pero Coelho de Sousa, fundador de uma povoação, Nova Lisboa, e um fortim, São Tiago (1603), às margens do rio Siará, distante, entretanto, da área em questão, o Centro de Fortaleza; logo em seguida, entre 1607 e 1608, o padre Luís Figueiras  fundou outra povoação, “distante légua e meia” da área anterior, provavelmente, às margens do riacho Pajeú, córrego que corta parte da antiga cidade. É o que demonstra o texto a seguir:

O novo local não poderia estar longe da praia nem de curso d'água, pelo que é possível, ou mesmo provável, que a escolha do jesuíta tenha recaído na foz do Pajeú (local depois preferido por Matias Beck), mesmo porque o sentido da marcha do padre era oeste-leste. Considere-se ainda o que ele mesmo escreveria em sua Relação do Maranhão quanto à distância de légua e meia em que tomara o navio que o levou de volta, certamente ancorado no Mucuripe, baía que, segundo consta do Diário de Beck, é o "sítio mais próximo e capaz de ancoradouro de nossos iates", distando do "Siará" (rio em cuja margem direita Pêro Coelho fundara a aldeia de Nova Lisboa) "obra de três léguas". Ora, légua e meia para o rio Ceará e légua e meia para o Mucuripe somam as três léguas registradas por Beck. (ADERALDO, 1974, p. 30)
Cartão postal da primeira década do Século XX, mais precisamente em 16 de outubro de 1913, no qual vemos a rua Barão do Rio Branco na altura do cruzamento com a rua Senador Alencar.
Teria sido esse o fato embrionário de Fortaleza, apesar dos historiadores cearenses, em maioria, apontarem para Martim Soares Moreno, primeiro capitão-mor do Ceará, devido à significância de sua obra e pelo destaque a ele dado pelo escritor José de Alencar, na obra Iracema. Entretanto, pelo que se notou na citação acima, os marcos de suas fundações distam uma légua e meia da área em voga. Lá, no local da primeira expedição de Pero Coelho do Sousa, Moreno edificou outro forte, São Sebastião, e uma ermida, Nossa Senhora do Amparo, em 1612. Para finalizar esse ciclo, dá-se por obrigação mencionar, a participação do holandês Mathias Beck, quando na segunda expedição holandesa ao Ceará, por ter ele fundado, em 1649, o forte Schoonenborch, nas mesmas margens do riacho Pajeú, para proteger o povoado também criado, a quem dera o nome de Nova Amsterdam. O forte holandês foi tomado pelos portugueses, liderados por Álvaro de Azevedo Barreto, em 1654, e logo batizado com o nome de Fortaleza da Nossa Senhora da Assunção. Será em torno desse forte e do riacho Pajeú, que a pequena Fortaleza irá crescer. Toda a área adjacente constituirá no que se convencionou denominar-se de bairro Centro.

Avenida Alberto Nepomuceno no início do século XX. A cidade cresceu no entorno do antigo Fonte Schoonenborch.
O povoado foi crescendo lentamente, até que, em 1726, tornou-se vila, a segunda do Ceará, uma vez que a primeira era Aquiraz, então capital da capitania do Ceará. É o que afirma Aderaldo:
Em face de renovados pedidos (...) preferiu o Rei que fosse criada outra vila no Ceará, junto à Fortaleza, o que ocorreu em 1725. E a 13 de abril de 1726 foi, afinal, definitivamente instalada aqui a Vila de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, a segunda do Ceará, pelo capitão-mor Manuel Francês. ADERALDO (1974, p. 33)

Rua Major Facundo. Álbum de Vistas do Ceará, 1908
Data mais ou menos dessa época¹, a primeira planta que se tem conhecimento de Fortaleza, descoberta, segundo Aderaldo, pelo historiador, padre Serafim Leite e publicada no 3º volume de sua História da Companhia de Jesus no Brasil. Essa gravura tem sua reconstituição, em forma de maquete, exposta no Museu do Ceará. Girão procura relacionar o lento crescimento da aglomeração urbana à questão geográfica, dando a entender que a vila começava a dar os primeiros passos de relativa autonomia em relação ao determinismo geográfico, bastante predominante naquele momento, com ações e intervenções espaciais mais audaciosas, ainda que “preguiçosamente”.
Rua Major Facundo. Álbum de Vistas do Ceará, 1908
A despeito de se tornar centro administrativo da capitania, no século XVIII, a tímida vila não conseguia concorrer em termos econômicos e populacionais a outros centros no Ceará, como Aracati, Sobral e Acaraú, impulsionados pela criação de gado, principal atividade econômica da capitania, ou Icó, grande centro comercial ao sul, ou mesmo Aquiraz, primeira capital, local preferido de moradia das pequenas elites, que também desenvolvia atividades comerciais. 

As dificuldades da pequena vila eram grandes, as condições de sobrevivência ínfimas. Demonstrando as circunstâncias críticas desde o solo aos ventos e os mares bravios, Girão descreve, com acuidade, que sobreviver na pequena Vila não era tarefa das mais simples, daí a necessidade de uma forte intervenção do homem no espaço, algo que ocorreu lentamente, uma vez que a região circunvizinha não oferecia atrativos que pudessem estimular a vinda de colonos.
Rua Formosa (atual Barão do Rio Branco) do Álbum de Vistas do Ceará, 1908
(...) o solo, o revestimento vegetal e a fauna da região circunjacente não davam, com efeito, melhor alento ou ajuda ao labor produtivo do homem. As atividades da caça e pesca não ultrapassavam as lindes de lastimável primarismo. Na mata pobre não se encontravam as madeiras de lei com que se pudesse montar qualquer indústria compensadora. De sua vez, o chão arenoso recusava-se a uma agricultura mais larga e capaz de lastrear riqueza substancial, garantidora de uma vida econômico-social mais refinada. A falta de pastagem não estimulava o criatório, exatamente quando este, já no seu apogeu pelos sertões, construía a típica civilização do couro. Do lado do mar, as revoltas ondas, quebrando na praia vã, sem cais nem trapiches, mostravam-se como seria ameaça à vinda de mercadorias e efeitos exógenos, tão necessários à existência não deixava seus variados aspectos. Cidade marítima não deixava de ser, mas com um oceano carrancudo e muito pouco amigo. Talvez só o clima, estável e ameno, entrasse naquele conjunto como índice positivo? Tem-se ideia gráfica da penúria da Vila de Nossa Senhora d'Assunção, olhando a planta rascunhada, em 1726, pelo Capitão-mor Manuel Francês e por ele enviada a Lisboa, como demonstração de seus serviços. É interessante documento encontrado pelo Padre Serafim Leite e incluído, a título, na sua obra admirável - História da Companhia de Jesus no Brasil(GIRÃO, 1974, pp. 59-60)

Rua da Misericórdia (atual Dr. João Moreira)
Álbum de Vistas do Ceará, 1908

Observando o traçado urbano da vila naquela ocasião, vê-se que ela segue um modelo que os colonizadores portugueses adotaram a partir de práticas ainda medievais, conforme explica Liberal de Castro

Este é o ambiente em que viviam os primeiros governadores da Capitania, civis na função, mas militares de profissão. O traçado da vila refletia um modelo de organização urbana caracterizada pela expansão linear, desenvolvida ao longo de rios e caminhos, consoantes uma tipologia morfológica comum nos vilarejos medievais europeus. CASTRO (1994, p. 44).

Planta de Fortaleza, em 1726

Concordando-se com a premissa acima, pode-se observar que grande parte das cidades brasileiras tem em seu traçado inicial exatamente o acompanhamento topográfico em torno de rios, principalmente, ou de rotas de trânsito, quase sempre comerciais. Vê-se claramente essa tendência na aglomeração de edificações ao longo do riacho Pajeú, que é a linha azul que corta a vila em duas metades. Pelo que se verificou até então, as condições geográficas naturais não eram favoráveis ao crescimento da região.




¹ Há uma polêmica em relação ao ano correto da confecção da planta. Alguns autores (NIREZ, 2001; GIRÃO, 1979) apontam para o ano de 1726, quando da instalação da vila. Outros (SERAFIM LEITE, 1943), para o ano de 1730, já uma terceira corrente (LIBERAL DE CASTRO, 2005), afirma ser o ano de 1831, data em que o capitão-mor Manuel Francês pleiteia indenização pelas despesas pessoais gastas com a instalação, anexando à petição, o desenho da planta.

Parte II


Fontes: Arquitetura Neoclássica e Cotidiano Social do Centro Histórico de Fortaleza - Gilberto Abreu.
CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. In: Uma nova história do Ceará. Org. Simone de Souza; Adelaide Gonçalves ... [et al]. 3. ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. 2. ed. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil. 1979.
PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle époque: reformas urbanas e controle social: 1860-1930. 2. ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1999.
PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: Uma nova história do Ceará. Org. Simone de Souza; Adelaide Gonçalves ... [et al]. 3. ed. rev. e atual. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Das antigas - Vacinogênio Rodolfo Teófilo (Parte II)


De Vacinogênio, Necrotério, para Casa de Material de Construção

Rodolfo Teófilo, baiano radicado no Ceará desde 1868, começou sua missão filantrópica a partir da contemplação das

secas que assolava a terra alencarina. Médico sanitarista, de espírito humanitário, iniciou seu trabalho filantrópico no Morro do Moinho*, no último quartel do século XIX. O Morro do Moinho era topograficamente a parte mais alta do Jacarecanga, tendo ao seu lado, o Morro do Croatá, que fora rebaixado para a construção da Via Férrea de Baturité.
Ao raiar do século XX, em 1º de janeiro de 1901, ocorrera a inauguração do Vacinogênio, fruto do trabalho de Rodolfo Teófilo. Na época, o Vacinogênio não agradou ao Presidente do Estado Pedro Augusto Borges, pois este não obedecia às diretrizes da oligarquia Aciolina.  


Fachada do Vacinogênio em 1918.

O Jacarecanga teve o privilégio de receber o Vacinogênio, que atendia, sem apoio governamental, aos pobres dos bairros periféricos da zona Oeste. O referido posto de saúde fora erguido na Estrada do Jacarecanga, que depois recebeu o nome de avenida Thomaz Pompeu e finalmente, Avenida Philomeno Gomes.
Com a morte de Rodolfo Theófilo em 1932, Roberto Carlos Vasco Carneiro de Mendonça, então interventor federal, transformou o Vacinogênio em necrotério, devido sua estrutura sanitária e a proximidade com o maior cemitério da cidade, o Cemitério de São João Batista, que remota ao ano de 1866. 


Vista Aérea do Jacarecanga. Em destaque o Prédio do Vacinogênio. 1956.


Aproveitando essa reforma, a irmandade da Santa Casa de Misericórdia, administradora do Cemitério, solicitou ao Interventor a desapropriação de algumas casas, para que o campo sagrado se estendesse até o muro do Vacinogênio, beirando uma via já movimentada. Depois o necrotério foi para a rua Nestor Barbosa nº 315 no bairro Rodolfo Teófilo, e quando foi implantado o Curso de Medicina no Ceará, em 12 de maio de 1948, passou a se chamar Instituto Médico LegalIML.
 
Por ironia, em novembro de 1986, talvez uma das últimas inaugurações do Governador Gonzaga Mota, o IML volta para o Jacarecanga, sendo localizado na avenida Presidente Castelo Branco (Avenida Leste-Oeste), esquina com a rua Padre Mororó.
A casa do Vacinogênio, depois de abandonada, foi transformada pelos que trabalhavam na extensão do cemitério, em depósito para guardar material. 


Assis Lima
(Radialista/Escritor)


Assis Lima entrou uma única vez nesta casa, que a gurizada do seu tempo dizia: “tem alma neste local”. Nenhum menino da época entrava só, os que entravam eram de mãos dadas.
Em 1969, ergueram um cruzeiro construindo uma meia lua de penetração no cemitério; junto com esse reparo no muro ocidental, desapareceu a casa do Vacinogênio/Necrotério e no embalo destruíram a casinha de força dos bondes elétricos da Ceará Tramway que havia sido desativada em 1947.





Leia a parte I AQUI
 
*Morro do Moinho: Local hoje onde se encontra o Instituto Médico Legal (IML)
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