Bonde Jacarecanga - Arquivo Assis de Lima
O calçamento de pedra tosca constituía-se, para articulista do jornal A Razão, em entrave ao progresso manifesto no crescente tráfego urbano. Em 12 de maio de 1929, ele chamava a atenção dos leitores a essa indesejada herança do passado. Ao contrário dos que realçavam o feitio nostálgico que o empedramento conferia à cidade, este enfatizou as necessidades práticas de uma nova pavimentação.
“Ha’ cousas velhas que parece nunca mereceram da imprensa a menor referencia. Correm os annos ás dezenas e ellas por ahi afóra permanecem esquecidas dos chronistas, posto que vistas por toda a gente, a qualquer hora do dia e da noite. A razão do olvido é, commummente, o facto de taes antigualhas não constituírem obstaculos á marcha desse corsel alado, que é o Progresso, ou perigos para aquelles que o cavalgam, na ansia de experimentarem a vertigem dos seus vôos... Encontram-se, porém, em Fortaleza
velharias que estão no caso de ser vistas, revistas, registradas, e destruidas. São trechos de calçamento visivelmente, sensivelmente, perigosamente, improprios para as necessidades do trafego, que a cada momente [sic] se torna mais intenso. [...] Sejamos amigos do
Progresso.”
Ser amigo do progresso implicava despojar-se de resquícios do passado. Se estes obstarem a modernização da cidade – como parece ser o caso de uma árvore postada no meio de uma rua ou de um trecho de calçamento antiquado –, é motivo suficiente para que sejam riscados da
paisagem urbana. O progresso, ora pintado como um corcel alado – imagem emblemática, pois bem expressa os anseios de modernização de parcelas da população, naquele tempo –, deveria seguir sua marcha inelutável.
Fortaleza das carroças
Com efeito, Fortaleza conheceria, na década seguinte, um notável surto de crescimento urbano e progresso material. Pode-se dizer que o período se constitui em marco na história da cidade, uma vez que ocorrem modificações de relevo em sua fisionomia: a substituição da iluminação pública a gás por um sistema elétrico, em 1934; a inauguração do Excelsior Hotel, em 1931, arranha-céu com impressionantes sete andares – edificado, vale
salientar, sobre as ruínas do sobrado do comendador Machado, demolido em 1927 (construção que datava de 1825 e guardava a marca de ser a primeira a ostentar três pavimentos, na vila recém-elevada a cidade); por fim, a pavimentação das ruas com paralelepípedos, e, nas vias mais movimentadas, a concreto, em reforma empreendida pelo interventor municipal Raimundo Girão, em 1933.
A pavimentação era mister em função da aceleração que caracterizava o novo quadro urbano. O antigo calçamento se achava obsoleto em relação às novas demandas de tráfego, conforme acusou o comentarista, pois a cidade não se movimentava mais como antigamente, ao ritmo moroso proporcionado pelos meios de transporte da Fortaleza antiga, os bondes puxados a burro e os “cabriolets” alugados ao velho Golignac.
Em vista da agilidade dos novos meios de transporte, impunham-se disposições de espaço favoráveis às expectativas de quem ansiava por experimentar a “vertigem dos vôos” do
“corcel alado” em que se afigurava o progresso. Para tanto, era necessário um espaço desimpedido de árvores e nova pavimentação, com a utilização de materiais apropriados aos imperativos da velocidade. Assim, é com entusiasmo que o comentarista do jornal O Povo saúda os leitores com uma “auspiciosa notícia”.
“[...] o sr. Prefeito da capital, major Tiburcio Cavalcanti, prosseguindo na serie de iniciativas e realizações que tanto destaque têm emprestado á sua proveitosa administração, vai iniciar dentro de breves dias a pavimentação a concreto das ruas da cidade. [...]
Fortaleza, comquanto seja uma bela cidade, é inegavelmente mal iluminada e peor calçada. O nosso calçamento é o mais retrogrado dos que existem no Brasil. Pedras irregulares, que mal se ajustam, que se deslocam, se aprofundam, ou sobem de nivel, fazem o atual
pavimento das nossas ruas, onde é impossivel o pedestre marchar a passo firme e os veículos circularem sem violentas trepidações.
Destarte, a medida a ser tomada pelo snr. Major Tiburcio Cavalcanti é dessas que merecem francos aplausos, mormente em se sabendo que não se trata apenas de pavimentar a concreto as arterias importantes da cidade, mas igualmente de calçar a paralelepipedo as
demais ruas.”
Nessa conjuntura, a fotografia foi convocada a testemunhar acerca da transformação da cidade.
A objetiva atestava a mudança no registro do que desaparecia (caso do Oitizeiro), mas também foi direcionada para elementos que certificavam o adiantamento da urbe.
A foto documentava a modernização da cidade na exibição de seus signos mais emblemáticos: pavimentação com placas de concreto, tráfego urbano e canteiros centrais arborizados. O fotógrafo preocupou-se em reunir, na mesma imagem, os meios de transporte comuns ao tempo: o automóvel, o auto-ônibus (em circulação desde 1928) e o bonde elétrico (já em declínio). Rua Major Facundo, em 1935 (Fonte: Lopes, 1998).
Parece certo afirmar que o tráfego era percebido como índice confiável para se inferir o progresso da cidade. Talvez não seja fora de propósito proceder a um breve retrospecto dos meios de transporte em Fortaleza, pois, além de se afigurarem em signos da modernidade, sua expansão repercute em novas formas de sentir o tempo.
Os primeiros bondes puxados a burro circularam em 1880, através de concessão da Prefeitura à Companhia Ferro-Carril. O evento “marcou época na vida de Fortaleza”, segundo conta João Nogueira, em texto de abril de 1936.
“Os que ainda restam daquele tempo se recordarão, talvez, da admiração e dos aplausos com que foi recebido, nesta cidade, tão grande progresso”
Bandas de música, fogos de artifício e uma sessão solene da Diretoria, lavrada em ata, marcaram o “memorável acontecimento”, que contara com a presença do presidente da Província, entre outras figuras ilustres que se achavam ali presentes.
O escritor Raimundo de Menezes também recordou, no programa de rádio Hora da saudade, transmitido pela estação PRE-9, os primitivos meios de transporte da antiga Fortaleza. Em 1937, a radiodifusão, tecnologia incipiente na cidade (havia então uma única emissora), permitiu que seus ouvintes, inclusive os que não podiam ler suas crônicas posteriormente editadas na Gazeta de Notícias, experimentassem um sentimento de nostalgia por tempos idos.
Pequeninos, modestos, dirigidos por um boleeiro, quase sempre enfiado num fraque, os primitivos bondes semelhavam, no formato, uma caixa de fósforos, tendo umas cortinas que escorriam balaústres abaixo, em proteção ao calor do sol e bátegas da chuva. Dois néscios
burros, cabisbaixos, usando uns grotescos antolhos de couro, puxavam, valentemente, o veículo, vergastados por cumprido chicote, e atendendo, humildemente, aos seus nomes característicos, berrados a plenos pulmões.
Após explorar o serviço por três décadas, a Ferro-Carril fora vendida, em 1912, à empresa britânica The Ceará Tramway, Light and Power. O novo sistema de bondes à tração elétrica seria inaugurado no ano seguinte, o que, no entanto, não significou o sepultamento da antiga forma de locomoção.
Conforme certifica o escritor, estabeleceu-se um “tráfego mútuo”: a substituição sucedera-se de maneira lenta e gradual, possibilitando a coexistência das duas formas de tração por certo período. O fato valera anedota de Álvaro Weyne, no jornal satírico O Automóvel, cujo “Dicionário” foi enriquecido de um novo verbete: “Light – Companhia de Bondes que faz Expressos com bondes de burros”.
Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima
Para além do valor anedótico, o episódio permite entrever a cidade como construção humana contínua. De fato, ela não cresce “em bloco”; é, ao contrário, habitada por tempos múltiplos, marcas de outras eras e vivências a elas ligadas. Ademais, a anedota assinala o caráter incerto de um processo que também conhecia tropeços e retrocessos: no passado, como no presente,
a realidade não era tão lisonjeira quanto pintavam os cronistas do progresso, conforme é possível visualizar em nota publicada na Gazeta de Notícias, em 24 de setembro de 1929.
“Fortaleza, em materia de transporte urbano, marcha na retarguarda das suas coirmãs nortistas. [...] A Light, de par com um horario defficientissimo mas até certo ponto toleravel ainda conserva a mesma rêde conductora de sempre, ameaçando com a sua calma britannica a vida dos transeuntes imprevidentes. As carroças, que fazem de bonde, continuam a passeiar na nossa urbs, indolentes, os restos de sua longa existencia. Domingo ultimo, uma dellas, a de nº. 58, de 2ª. classe, com a placa «1ª. secção–Estação», ás 10,10, cançou sob o peso dos annos, bem em frente a esta redacção.
Estava no prégo e não conseguiu reanimar as forças. Outra companheira de infortunio arrastou-a para as officinas. Pobres carroças... não têm direito a uma aposentadoria!...”
De qualquer modo, o corcel seguia vencendo, não sem alguma dificuldade, os percalços encontrados no caminho: “O último bonde de burro que rodou pelas ruas de Fortaleza foi o de n° 25, guiado pelo velho Fialho, na linha do Alagadiço, a derradeira a ser eletrificada”.
O número de veículos conheceria um salto notável, ao longo dos anos trinta. Para atender às demandas de locomoção de uma população que quase dobrou em duas décadas – de 78.536 habitantes, em 1920, para 149.670, em 1940 –, eles mais que duplicariam, no período relativo a esta pesquisa: em 1929 eles eram 600 aproximados, para atingirem a cifra dos 1.287, em 1944.
Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima
O aumento do número de veículos em circulação pelas ruas da cidade não se realizaria incólume: em decorrência da intensificação do tráfego entravam em cena os atropelamentos, tragédia inaugurada pela modernidade.
Quem folheasse o jornal, naqueles tempos de mudança, por certo ficaria alarmado ante a freqüência com a qual ocorriam: automóveis, auto-ônibus e bondes elétricos cotidianamente produziam numerosas escoriações, fraturas e mortes, inclusive.
“Dia a dia a imprensa citadina regista atropelamentos nas varias ruas desta capital, a maior parte devido á desenfreada velocidade desenvolvida pelos vehiculos. Hontem, mais um desses accidentes se verificou nesta cidade, sendo grave o estado da victima. Cerca das 16,1/2 horas, o auto-omnibus n. 507 A O, que tinha placa «Joaquim Tavora» e guiado pelo «chauffeur» Elyseu Alves se movimentava em direcção áquelle bairro, tendo partido da Praça do Ferreira, o qual desenvolvia, na occasião do desastre uma velocidade de 60 kilometros. No momento em que aquelle vehiculo passava em frente á Igreja do Coração de Jesus, apanhou em cheio o menor José Barros Martins, de 12 annos de idade. Resultou desse violento choque receber o menor, que é filho do sr. Joaquim Martins, ferimentos na cabeça, facturando a perna esquerda e ainda escoriações generalizadas.”
Ônibus da Ligth-Arquivo Assis de Lima
Os periódicos de hoje pouco se ocupam em noticiar os “desastres de rua” (uma vez que já fazem parte de nossa rotina), mas aquele tempo deixou vestígios de como eram percebidos: o espaço que lhes era dedicado indica que se constituíam em eventos extraordinários que irrompiam na calmaria da vida de uma cidade pacata, até há pouco. Entretanto, é possível vislumbrar, entremeado aos relatos de acidentes, algo de laudatório, pois, como ironiza
João Nogueira, em crônica de abril de 1936, estes incidentes se constituem em índices do progresso e grau de civilização alcançado por uma cidade.
Dizem certos entusiastas que os desastres de rua estão na razão direta do progresso das cidades e que são o índice (ou termômetro) pelo qual se avalia o progredir de cada terra. Tais
acidentes mostram que a Fortaleza tem vida, tem gente, movimento e progride.¬¬ É isso?
Em virtude da aceleração urbana, percorrer os espaços da cidade era tarefa que principiava a requerer atenção constante, reflexos rápidos, gestos bruscos...
O perigo de ser colhido por um “auto”, ao atravessar a rua ou descer do bonde, era considerável. Aos mais jovens talvez fosse possível a adaptação aos novos tempos – arremessados em um turbilhão, poder-se-iam descobrir portadores de forças que não imaginavam possuir, a fim de garantir a própria sobrevivência.
Aos de mais idade, porém, restava o recolhimento à segurança do lar ou, em caso de descuido, ao tentar apanhar o bonde, à cama da Santa Casa (na melhor das hipóteses). Ou ainda a crítica velada no jornal.
A Inspetoria Geral de Veículos, órgão criado no intuito de gerenciar a nova situação, buscou coibir a “volúpia” de velocidade de alguns chauffeurs prescrevendo normas e punições aos infratores (da multa à suspensão da licença para guiar, e até mesmo a prisão). Em edital publicado a 17 de outubro de 1930, foram estabelecidos limites de velocidade conforme as zonas em que a cidade estava dividida: a marcha dos automóveis no perímetro central era
restringida aos 10 km/h; 20 e 30 km/h, para as áreas urbana e suburbana, respectivamente; e 40 km/h, na área rural.
No entanto, a tecnologia desenvolvida para os automóveis possibilitava que atingissem, já em 1929, a marca dos 120 ou 130 quilômetros horários Em função do rápido crescimento da urbe, uma legislação adequada à nova realidade não tardaria. O Código de Posturas de 1932 substituiu a lei de 1893, obsoleta, pois não contemplava as novas condições, constituindo-se,
portanto, em obstáculo ao progresso e urbanização da cidade.
O Código normatizava construções, dimensões de ruas e passeios, arborização de logradouros (criava até uma Inspetoria de Arborização e Jardins, com a incumbência de decidir sobre poda e derrubada de árvores), “garages” para automóveis, estabelecimentos comerciais e o próprio trânsito. O dispositivo legal apoiaria as ações da municipalidade que objetivavam a modernização da cidade, além de prevenir desvios decorrentes do crescimento desordenado,
que se verificavam em função da ausência de um plano de urbanização.
No suprimento de tal demanda, inscreviam-se os esforços de Raimundo Girão com vistas à criação e implementação do Plano de Urbanização de Fortaleza, durante sua administração (1933-4). A medida impunha-se, segundo o prefeito, em razão de Fortaleza ser uma “cidade de progresso rápido”, mas pouco sistemático, acarretando erros que a todo
instante exigiam a aprovação de leis municipais atinentes à sua correção.
A elaboração do Plano coube ao engenheiro Nestor de Figueiredo, urbanista com vasta experiência, adquirida no planejamento das cidades de Recife e João Pessoa.
O tempo do progresso encontraria expressão e legitimidade na Coluna da Hora, grande torre encimada por relógio com quatro mostradores, erigida na praça do Ferreira, no final de 1933. O artefato confirmava a tendência à verticalidade do mundo urbano, já configurada na edificação do Excelsior Hotel – verticalidade outrora preenchida por árvores. Em uma cidade retrógrada, onde até o mostrador oficial da cidade, que figurava no prédio da Intendência municipal, costumava atrasar, como que a resistir teimosamente à mudança, o
novo artefato simbolizava uma aceleração do tempo, representava a adesão ao tempo linear, uniforme, do mundo moderno.
A Coluna da hora, na Praça do Ferreira. O relógio ganhava centralidade,
impondo uma nova duração à cidade. A verticalidade urbana também se
insinuava no Majestic Palace, o maior prédio ao fundo.
O atraso da urbe não se manifestava apenas em seus cronômetros: a deficiente iluminação pública a gás se constituía em outro elemento que atravancava a marcha da cidade no rumo da civilização.
A iluminação elétrica de ruas e praças, inovação de 1934, substituiu um sistema abastecido por combustores “antiquados” e em número insuficiente, na percepção de articulista do jornal A Razão.
Não bastasse o apontado, os postes eram acesos alternadamente desde 1914, segundo João Nogueira, em função das dificuldades impostas pela Primeira Grande Guerra ao fornecimento de carvão de pedra, combustível de que dependia o sistema. O que, no entanto, não o impedia de lembrar o tempo em que “a nossa iluminação pública, se não era a
melhor, era das melhores do país”, superior, inclusive, à nova iluminação, conforme afirmava em artigo publicado em julho de 1938, dedicado às formas de iluminação pública que a cidade já conhecera.
“[...] mas, valha a verdade: a iluminação das nossas ruas até 1914 era mil vezes melhor que a atual. Os combustores eram implantados em ziguezague, distando cerca de trinta metros um do outro, no mesmo lado da rua. Contribuíam para esta excelente iluminação a pequena
distância entre eles, sua pouca altura (2m40), a brilhante chama em forma de leque, queimando um gás bem preparado, a tampa pintada de branco, por dentro, servindo de refletor, espalhando a luz pelas calçadas e ruas, e a manga de vidro, inteiriça. Tudo isto no alto de uma coluna de ferro fundido, elegante, esguia e canelada. Eram todos numerados.”
Seu juízo em favor da antiga iluminação seria posteriormente questionado.
Mas, conforme o historiador Antonio Luiz Silva Filho pontua, João Nogueira não emitia, na passagem citada, um parecer meramente técnico. Talvez ele postulasse sua preferência ao antigo sistema não porque sua luz fosse mais potente, ou constante, mas porque os velhos postes da Ceará Gás compunham a paisagem da cidade onde criara raízes, nas referências consolidadas ao longo do contato prolongado com o espaço, comunhão desfeita com o aniquilamento dessas referências, e conseqüentemente, do mundo onde se reconhecia.
Por outro lado, como vigilante das tradições da cidade e guardião de sua memória (função da qual se auto-incumbira, no longo e doloroso processo de modernização da cidade), a polêmica que levanta evidenciava a compreensão de que a inovação não representava benefícios tão grandes que justificassem a mudança de um componente tradicional da cidade (o sistema
datava de 1867, não por acaso, ano em que ele nascera). O problema apontado nos jornais (a economia na hora de acender os combustores) haveria de ter uma solução. Mais que uma presa do saudosismo ingênuo, João Nogueira se revela um crítico mordaz do progresso sem freios, da mudança radical justificada não por um suposto conforto que dela pudesse advir, mas por seu caráter de novidade. Sua aversão não se direcionava à inovação em si,
mas para sua busca desmedida, que levava os homens a esquecerem o passado, suas raízes.
João Nogueira por certo não desejava uma cidade imutável – tal como a Zora pintada por Calvino, que para facilitar a memorização de seu traçado permanecia inalterada, na infindável sucessão de ruas e casas, portas e janelas, e em função disso “definhou”, foi “esquecida pelo mundo”.
Toda cidade cresce, se transforma (como bacharel em Engenharia ele sabia disso perfeitamente). Mas a mudança não devia se colocar a serviço do esquecimento. Olvidar as tradições é coisa que não admitia.
O aperfeiçoamento foi saudado por segmentos sociais envolvidos na transformação da capital que ainda se deixava reger pelos ritmos da natureza, mantendo apagados os combustores quando das noites de lua cheia – o “contrato com a lua” mencionado por João Nogueira e outros memorialistas, alvo de pilhérias por parte da população. Sua luz potente teria o poder de apontar ao garboso corcel alado do progresso o caminho por onde faria sua apoteose, a passos firmes, porque mais seguros, em virtude do novo pavimento e da eletricidade que lhe alumiava o chão.
As mudanças ocorridas nas primeiras décadas do novo século pareciam, assim, concretizar o triunfo da cidade sobre as forças da natureza: após os bondes dispensarem os burros como força motriz e uma árvore que se achava no caminho do progresso ser finalmente derrubada, era a vez de o “contrato com a lua” ser rescindido. O domínio da luz permitia escapar aos
ritmos da natureza e sua regular sucessão entre dias e noites, constituindo-se em elemento definidor da “artificialidade” do mundo urbano.
A parceria com o referido satélite era coisa do passado, assunto para cronistas da Fortaleza
antiga. Quando muito poderia ser lembrada, não sem uma pontinha de saudade.
Fonte: Tempo, progresso, memória: um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta -
Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira - 2006