Memória afetiva é goiaba doce. É rua onde a gente foi miúdo e achava que ela enorme, de areia e calçamento, de bicas, fuscas e fuxicos. De amanheceres com cheiro de café coado se intrometendo de casa em casa e galinhas de alarmar o ovo. Do homem da carroça d´água e do caboclo que gritava “ó o paulisssta!”.
É tudo que se costura com o anteontem. Para uns, nostalgia-alfinete de um fim de domingo. Pra outros, tempo que foi bom e pronto. E fomos feitos de quase tudo que se passou na esquina de engatar cachorros ou na sala onde havia um altar, bibelôs e, raros, os que possuíam um aparelho de TV em preto e branco.
Havia um grupo, meninos das décadas de 60 e 70, que até ouviu a Banda passar. Mas eram crianças demais e estavam sentados nos mosaicos assistindo seriados americanos dos Estados Unidos. De tropa, antes dos rachinhas, em frente a televisão de válvulas de esquentar. Olhos grelados. Copo de café quente e pão de mergulhar nas tardes que anoiteciam.
Pois não sumiram das lembranças deles, até hoje, os ontens com o Túnel do Tempo, Terra de Gigantes, Viagem ao Fundo do Mar, Jeanne é um Gênio, Durango Kid, Rin-tin-tin, Lassie, Besouro Verde, A Feiticeira, Planeta dos Macacos, Perdidos no Espaço...
Tão assim que não conseguiram deixar de espalhar sobre o dia em que viram de perto Dr. Smith vestido de Jonathan Harris. Ao vivo, em cores, sem bombril na antena e chuviscos. Ele de roupinha simples, até furada. Um longilíneo homem dado, passageiro comum do navio Americana que aportou no Mucuripe, em 1995.
Foi assim: o menino Rinaldo, alucinado pela família Robinson, quis saber do amigo Carlinhos como ele havia faturado um autógrafo do Dr. Smith. O amável vilão e seu robô Lata de Sardinha. “Perigo, perigo...”. E não acreditou quando contaram que Jonathan Harris, já nostálgico de Perdidos no Espaço, vez ou outra descia de uma embarcação no Mucuripe e ia ter no Mercado Central e Beira-Mar.
Correu doido e passou a vigiar, através de um vizinho, prático do Porto, qualquer vapor que trouxesse o gringo da América do Norte. Até que um dia, Dr. Smith apareceu numa lista de passageiros e, longe de ser flaite, aceitou receber quatro fãs, um tradutor e uma filmadora de fita VHS.
E foi uma fatia deliciosa de entardecer em conversas, paparicos e miolo de pote. Prosa inesquecível, afinal Dr. Smith andou muito nas casas de quase todo mundo do Porangabussu e Fortaleza toda. O cientista mau (mas nem tanto) era da sala de almoçar, merendar e jantar, onde também se atavam redes e se assistia tevê comendo bolo sol e tomando Coca-Cola Família.
Dr. Smith gostou tanto daquele encontro com os meninos que deixou endereço, trocou cartas, mandou fotos autografadas e deu notícias do professor John Robinson, da mãe Maureen Robinson, do major Donald West, da aprumadinha Judy, da filha Penny e de Will Robinson...
Os meninos estão hoje pra lá dos 40. Vez em quando, ainda são meninos e recordam do clubinho Vídeo Tempo, era do VHS difícil. Jonathan Harris, o amado vilão Doutor Zachary Smith, se foi de vez em 2002 aos 87 anos.
Jonathan Harris conta nessa entrevista como foi o seu encontro com os jovens fãs cearenses:
Créditos: O Povo (Demitri Túlio) e Youtube