"Descobri Fortaleza aos nove anos de idade, precisamente no dia 27 de agosto de 1945, quando vim de Beberibe, tangido pela tragédia que foi a morte de meu pai.
Lembro demais, era uma linda e ensolarada manhã de segunda-feira. Tão linda era aquela manhã, plena de sol, que amei, de pronto, esta cidade, apesar do estado de quase torpor em que me encontrava, em virtude do passamento de meu genitor, cuja missa de sétimo dia ocorrera no dia anterior.
Fui morar na parte mais aristocrática da avenida do Imperador, com seus bangalôs e casarões nobres, suas amplas calçadas e seus majestosos oitizeiros.
O percurso entre a parada do ônibus, na praça dos Voluntários, e a casa de meus familiares, foi de surpresas sucessivas. Embora Fortaleza daquele tempo fosse uma encantadora província, se comparada à minha pequenina e inocente Beberibe, me parecia uma metrópole. Algo como deixar Fortaleza, agora, e chegar a Nova York. Encantavam-me os prédios altos, as lojas bonitas e suas vitrinas, as ruas movimentadas, os carros, o barulho ensurdecedor dos bondes, a elegância das pessoas, as residências chiques.
Avenida do Imperador, vendo-se ao fundo o casarão de Thomaz Pompeu.
Acervo pessoal de Sérgio Roberto
Naqueles dias, a população de Fortaleza, de cerca de duzentos mil habitantes, assim como as populações de todos os quadrantes do mundo, vivia, ainda, a euforia pelo término da Segunda Guerra Mundial, daí o clima de festa, a alegria que parecia estar em cada face, em cada sorriso.
Ideal Clube meados dos anos 40
Talvez por ser tão pequena e tão singela, Fortaleza, na metade da década de 40, era uma cidade com ares aristocráticos, tinha pudores de donzela, não obstante ser tão francesa no seu aculturamento. A França determinara a formação das senhorinhas de boa estirpe, assim como comandava a moda, o padrão das lojas e de suas artísticas vitrinas, a vida social que acontecia no Clube Iracema (foto ao lado), no Clube dos Diários e no Ideal Clube. Por isso, era chic, na Fortaleza daqueles tempos idos, prendadas donzelas conversando em francês e tocando piano, nos fins de tarde, nas senhoriais moradias do centro da cidade.
Clube dos Diários funcionando no Palacete Guarani e sua diretoria na década de 40.
Como chic era assistir à sessão das sete e meia do Cine Diogo, fazer compras na Casa Sloper, ver vitrinas da Casa Parente, merendar no O Jangadeiro ou no Eldorado, ter, na sala, uma ampliação colorida da Aba Film, usar perfume Promessa, encomendar chapéus às Irmãs Almeida, frisar os cabelos na Madame Santinha, comprar tecidos finos na A Cearense ou na Broadway e, aos domingos, assistir à missa das oito, na Capela das Missionárias, na Avenida Rui Barbosa.
Em agosto de 1945, com o término da guerra e a debandada dos soldados americanos, as "coca-colas" estavam em recesso, mas, ainda faziam sucesso, principalmente, a estonteante Cyres Braga, que chamava as atenções gerais quando desfilava, pelas ruas do Centro, com seu andar ondulado e seu olhar de mormaço.
As damas de fino trato usavam peças de bronze e alabastro para ornamentar suas casas, não dispensavam os cristais da Boêmia, as baixelas de prata, os abajures com cúpulas de pergaminho legítimo, os aparelhos de jantar, em faiança "castelo azul", de origem chinesa, via Inglaterra.
Os americanos na sede da Uso (Estoril) com as Coca-Colas na década de 40.
Acervo Castro Cascais
Praça General Tibúrcio (Praça dos Leões) em registro dos anos 40.
Também a moda era duradoura. Roupas, sapatos e chapéus eram usados até a saturação. Não havia técnicos de marketing determinando que a moda tinha de ser efêmera e mudar, continuamente, para agradar os industriais têxteis, os fabricantes de calçados, os chapeleiros. Não havia, ainda, a indústria da confecção, todo mundo era obrigado a comprar os tecidos e procurar os alfaiates ou as costureiras.
A elegância dos homens na Fortaleza antiga. Na foto, vemos João Clímaco Bezerra, Mozart S. Aderaldo, Edval Távora e Chico Novaes, na Praça do Ferreira em 1946.
Os homens usavam ternos de linho irlandês de dia e, de casimira inglesa, à noite. Os bem talhados ternos eram feitos pelos mestres alfaiates, instalados, regra geral, na rua Guilherme Rocha, entre as ruas Barão do Rio Branco e General Sampaio. As mulheres usavam muita seda francesa, com estampas florais sobre fundo negro; musselinas para os vestidos de noite, muito laço, muito drapeado, fivela, "apanhados", fricotes. Os sapatos eram, quase sempre, combinados de pelica e camurça, abertos, de preferência e, não raro, os ditos "plataforma", inspirados em Carmen Miranda. As luvas, indispensáveis até para as compras no mercado, do mesmo jeito que o chapéu. Os decotes eram discretos, as saias desciam até esconderem as batatas das pernas, envoltas em meias de seda.
Exemplos de figurinos usados pelas mulheres na metade da década de 40, quando Marciano Lopes chegou em Fortaleza.
O Palácio do Comércio com destaque para o Café Belas Artes
A propósito, os cinemas do Centro apresentavam duas sessões, sendo uma às três e meia e a outra às sete e meia. Naquele dia, 27 de agosto de 1945, era esta a programação das nossas salas cinematográficas: Diogo - Prisioneiro de Zenda, da Art-Films; Moderno - Minha namorada favorita, da Fox; Majestic - Império da desordem, da Columbia; Rex - Não adianta chorar, da Atlântida; Luz - o mesmo programa; Nazaré - (sessão colosso) Os valentes de guarda, da Columbia e Fuzileiros da Fuzarca, da RKO Rádio; Centro - Serenata azul, da Paramount.
Assim era Fortaleza, em 1945, quando as mulheres se "arrumavam" para sair, se faziam elegantes para ir o cinema, quando as bijuterias eram filigranas e marcassitas, quando as meias eram de seda, quando as sombrinhas protegiam dos raios solares, as "cútis aveludadas como pétalas de rosa".
E você, quando descobriu a sua Fortaleza?
Fonte: Livro Royal Briar