O mundo, na década de trinta estava passando pela maior crise que o sistema capitalista já tinha experimentado, afetando a economia de quase todos os países. No Brasil, o cenário estava sinistro, as oligarquias se viram de uma noite para outra em total desespero: a estrutura do regime abalou-se completamente, a Depressão acabou com a oligárquica “Primeira República” de 1889 – 1930 e levou ao poder Getúlio Vargas, mais bem descrito como “populista nacionalista”.
Neste contexto, ocorreram algumas mudanças políticas no país. Os estados perderam autonomia, e houve uma forte centralização política.
Crédito: TV Verdes Mares
As oligarquias caíram, mas como a “revolução” teria que seguir a cartilha da democracia liberal de reforma do estado burguês, não houve uma mudança na distribuição da riqueza da sociedade. Apesar de não ter ocorrido uma mudança radical em termos de classes sociais, houve uma transmutação política. Passou-se de um “liberalismo oligárquico” para um “centralismo interventorial”. Getúlio Vargas criou as interventorias estaduais, responsáveis para tomarem medidas administrativas, políticas, econômicas e jurídicas sem precisarem consultar as elites locais, embora na prática não fosse bem assim, pois as lideranças locais ainda exerciam influência nos interventores, é claro que de uma forma mais atenuada em relação às oligarquias estaduais.
Carneiro de Mendonça é escolhido para ser o novo interventor do Ceará. Conhecido por ser muito hábil e político, Mendonça faz alianças com as oligarquias decaídas, contrariando, à primeira vista, a orientação dos revolucionários. Todavia, com a aliança, Mendonça conseguia fazer uma gestão mais calma e sem oposição. Apesar de o regime político ter mudado, era necessário agir com cautela, pois muitas oligarquias mesmo não estando no governo poderiam prejudicar o novo interventor, fazendo uma forte oposição ao ponto de perder o cargo.
As relações entre os interventores federais e as oligarquias estaduais eram bastante complexas, tênues, podendo ser rompidas a qualquer momento, o que justificava este malabarismo político. Sem falar que outro episódio norteava Fortaleza em 1932, a revolução constitucionalista, que deixou a situação da seca ainda mais complexa e dividiu a atenção do governo que ora tinha que dirigir as atenções para o sul, preocupado com o movimento das oligarquias “decaídas”, ora tinha que concentrar as energias no combate à seca e manutenção da ordem social. Os discursos ficaram mais eufemizados por parte da elite e do governo, em virtude do momento de tensão que estava ocorrendo em São Paulo. Podemos observar melhor essas mudanças numa matéria do jornal O Povo, que tinha como título “O Momento Político”, que é uma pequena entrevista com o Interventor Carneiro de Mendonça sobre esse período:
Carneiro de Mendonça fez claramente um discurso de conciliação. Ele demonstra que as coisas serão resolvidas sem radicalismos por parte de ambos os lados, “sem quebra de dignidade”, como sendo possível expurgar as diferenças através da negociação e do diálogo fraternal. Porém, verificamos como ele responde com extrema cautela a pergunta sobre a constituinte, devido ao momento conturbado que se passava no Brasil, podendo afetar diretamente os seus interesses, ou seja, a perda do cargo.
A seca e a situação dos retirantes passaram então a ser segundo plano para o governo e para imprensa, que passou a dar maior ênfase aos acontecimentos do sul até o mês de outubro, quando o movimento em prol da constituinte foi diluído. A imprensa oficial tentava justificar o seu interesse no sul, através da defesa do “Golpe de 1930”, estabelecendo uma dicotomia norte-sul, como se o “Golpe de 1930” fosse benéfico para o norte e a sua ruptura só favorecesse ao sul.
A “Revolução” garantiria para o Norte uma posição favorável no jogo de forças políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superficialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, considerado pelas elites locais como principal fator de sua decadência. O jornal O Povo, portanto, imediatamente aprova a criação do “segundo Batalhão provisório destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da Ditadura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredidas pelos reacionários paulistas”. A “inoportuna rebelião paulista”, segundo o jornal, “traz, em seu bojo, uma sede de domínio que, se tivesse de ser saciada, acarretaria a desgraça do “Norte”, já que a “hegemonia paulista sempre foi funesta aos nossos interesses regionais”. A “Revolução de 30”, ao contrário, veio “criar para o Norte condições próprias até então desconhecidas.” (NEVES, 2000, p. 136 e 137).
A negligência da imprensa em relação à seca até o mês de outubro foi justificada pelo interesse em manter a continuidade do governo provisório que, segundo acreditavam, favorecia os “interesses” regionais, legitimada como sendo necessária para garantir a autonomia do “Norte”. Enquanto isso, os campos de concentração¹ foram esquecidos na imprensa, apesar das verbas do Ministério da Viação continuar chegando ao estado do Ceará. Porém, mesmo num contexto tão repleto de conflitos políticos, o Estado conseguiu agir de maneira centralizada e organizada.
É possível verificar essa organização e centralização com a implantação das interventorias, que refletiu diretamente na maneira de se combater a seca no estado do Ceará. Os retirantes não estavam mais tão esperançosos de receber viveres, ou qualquer outra ajuda da iniciativa privada. Agora isso ficava a cargo do Estado que controlava a economia.
“Por decreto nº. 796, de 17 de outubro de 1932, foi criada, em substituição ao comissário de alimentação, a comissão de abastecimento público, que ficou incubada da fiscalização de todo o território do Estado”.
Com a criação da comissão de abastecimento público, todo comerciante ficou impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o intuito de provocar elevação de preços. Aqueles que tentassem infringir, - não foram poucos, os infratores – seria condenado a multar de 500 $ 000 a 1: 000 $ 000, e ao dobro, nas reincidências.” (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P. 65.)
O governo estava agindo de forma mais centralizada, controlando até mesmo as oscilações nos preços dos alimentos. O governo efetivou o combate à seca através da articulação dos seus órgãos, que no caso são: IFOCS (Inspetoria de Obras Contra a Seca), Interventoria Federal que tem a frente o Interventor Roberto Carneiro de Mendonça e Ministério de Viação e obras públicas dirigido pelo ministro José Américo de Almeida. Essa articulação se concretiza através do departamento de secas. Podemos perceber essa relação através de uma matéria do jornal O Povo cujo título era “Plano de socorro às vítimas da seca”. A matéria dizia o seguinte:
Nitidamente havia uma maior articulação, e também uma maior preocupação em relação à seca de 1932. Esta situação de tensão foi aproveitada pelas classes abastadas, que frequentemente “clamavam” pela urgência de obras públicas, conseguindo atrair cada vez mais recursos do governo federal para implantação do seu projeto de modernidade.
Para o governo as migrações volumosas de pessoas “esfomeadas” era um perigo constante para a capital, ao passo que eles poderiam trazer doenças contagiosas, além de outras “inconveniências” que uma miríade de retirantes mobilizados poderia causar à cidade e ao governo. Foi estabelecido nesse momento um serviço de assistência ao flagelado, que tinha uma preocupação notória com o controle da população e a prevenção de doenças. Sendo interessante transcrever uma parte do relatório do Interventor federal, que mostra como funcionava, segundo ele:
Desde aquele ano, início do grande êxodo das populações sertanejas em face da tragédia climática já declarada, pesando a responsabilidade que nos cabia em função do perigo que representava brusca dessa massa humana inteiramente desprovida de conhecimentos que pudessem interessar à sua defesa sanitária, foram tomadas as primeiras medidas de amparo e salvaguarda. Medindo bem a gravidade e a extensão do problema e não fugindo a ele, deu-se começo a um serviço de assistência e prevenção, que obteve, conseguindo-se com esforço sobre-humano defender o Estado da projeção de epidemias muito mais devastadoras do que as que se apresentavam. De saída a luta restringiu-se aos próprios recursos do Estado e aos pequenos auxílios do governo central, seguida mais adiante pela população da cruz vermelha, vindo tempo após o Ministro da Viação em socorro, por intermédio de um contrato com esta interventoria, elaborando-se assim o projeto definido de organização dos serviços de assistência médicas aos flagelados do Ceará, anexada a D.S.P em virtude de suas cláusulas. Por este acordo os serviços abrangeriam os operários da I.F.O.C.S e os campos de concentração, compreendendo 18 postos, 5 residências sanitárias e 4 hospitais, construídos também de seções matrizes de Direção, contabilidade, farmácia, almoxarifado e expedição, incluída ainda a mantença de 80 leitos destinados às crianças retirantes. Tinham os postos como objetivo os cuidados de prevenção contra doenças contagiosas assistência médica cirúrgica a enfermos e acidentados, a fiscalização dos gêneros alimentícios, o controle de estatística vital e a propaganda e educação sanitárias”. (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P.124 - Pintura: Retirantes de Portinari)
Outro elemento importante é como o governo enxergava o costume dos retirantes, que “eram inteiramente desprovido de conhecimentos que pudessem interessar a sua defesa sanitária”. Podemos notar a comparação em tom de escárnio em relação à higiene dos retirantes. Trata-se de uma contradição aos padrões de assepsia moderna, que a elite fortalezense almejava, sendo, portanto, o papel da Interventoria educar aquela população aos padrões “normais” de higiene.
Apesar das migrações não serem uma especificidade da seca de 1932, a peculiaridade desta seca é sua relação com o aprofundamento do processo de favelização da capital, e com o protejo de modernização do governo. Entre 1930-1955 surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Zé Padre² no Otávio Bonfim (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933)³, Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papouquinho* no Dias Macedo (1950), Estrada de Ferro (1954).
*A favela do Papouquinho foi a primeira favela a surgir no Bairro Dias Macedo, tendo origem num processo de invasão de terreno por famílias provindas, em sua maioria, do interior do Ceará.
A seca acelera um processo de aprofundamento das contradições do espaço urbano de Fortaleza, na medida em que os retirantes, quando chegam à capital, precisam de moradias. Neste ponto entra o projeto do governo, a especulação mobiliária, o poder das classes abastadas, no sentido de afastar os flagelados da zona central e tangenciá-los para as favelas. Pois não era do interesse da elite que essa população ocupasse as áreas nobres da cidade, ou melhor, as áreas mais modernas e urbanizadas. Os retirantes poderiam servir para essa elite como exploração de mão de obra barata no desenvolvimento da urbanização da cidade, mas jamais poderiam servir como “vizinhos”.
¹Segundo a professora Kênia Sousa Rios, do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) (autora de Campos de concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932), os campos de concentração de 1932 ficavam estrategicamente localizados próximos às estações de trem. Assim os retirantes desciam das conduções e eram imediatamente conduzidos aos campos. Os campos se localizavam nas cidades de Buriti (distrito do Crato), Patu (Senador Pompeu), Cariús (São Mateus), Ipu, Quixeramobim, e em Fortaleza nos bairros do Pirambu (chamado Campo do Urubu) e Otávio Bonfim. Estes locais contavam com uma estrutura básica (se é que pode se falar de estrutura neste caso), com posto médico, para onde eram levados os enfermos, cozinha, barbearia, banheiros (insuficientes), capela e casebres ou galpões, divididos em pavilhões para homens solteiros, viúvas e famílias, tudo em estado de precariedade.
² O Cercado do Zé Padre era um imenso areal ao norte do Jardim Japonês, ao sul da Praça São Sebastião, após um açude onde as lavadeiras das redondezas lavavam suas roupas. (Diário do Nordeste)
³ É necessário fazer uma observação sobre a favela do Lagamar. A citação do (Silva, 1992) foi extraída do documento organizado pelo Governo do Estado, intitulado Migrações para Fortaleza em 1967. O problema é que, no referido documento, a favela do Lagamar é datada de 1953, e não 1933 como mostra Silva. O debate do inicio da favela não é uma questão menor. Diferentemente do Mucuripe, Pirambu, Arraial Moura Brasil, que em 1933 já eram favelas com razoável número de moradores, o Lagamar começa a constituir as primeiras habitações após a seca, como demonstra o depoimento da Maria Lagamar. “A favela do Lagamar surge em 1933, momento em que estava sendo construída a BR-116 no antigo Caminho de Messejana, acesso para quem vinha do sul, centro e sudeste do Estado. O terreno era irregular e alagado e foi sendo ocupado por retirantes da seca. "Aqui era só lama, mato e espin... Eu cavei um buraco, formou um olho d´água que era um amor... Aí é que foi chegando gente", diz dona Maria Custódio da Silva, a Maria Lagamar, uma das primeiras moradoras do local, em depoimento ao pesquisador Luiz Távora. Segundo a moradora, o próprio nome do bairro advém dela. A questão é que se os primeiros habitantes do Lagamar começam a chegar no local em 1933, não podemos dizer que ali já se encontrava uma favela. Isso demonstra que a seca de 1932 contribui para a gênese desse processo, e não secas anteriores como Mucuripe e Pirambu.
Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de castro. A multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará./ Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Imagens da Cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002./ Biblioo Cultura Informacional
As relações entre os interventores federais e as oligarquias estaduais eram bastante complexas, tênues, podendo ser rompidas a qualquer momento, o que justificava este malabarismo político. Sem falar que outro episódio norteava Fortaleza em 1932, a revolução constitucionalista, que deixou a situação da seca ainda mais complexa e dividiu a atenção do governo que ora tinha que dirigir as atenções para o sul, preocupado com o movimento das oligarquias “decaídas”, ora tinha que concentrar as energias no combate à seca e manutenção da ordem social. Os discursos ficaram mais eufemizados por parte da elite e do governo, em virtude do momento de tensão que estava ocorrendo em São Paulo. Podemos observar melhor essas mudanças numa matéria do jornal O Povo, que tinha como título “O Momento Político”, que é uma pequena entrevista com o Interventor Carneiro de Mendonça sobre esse período:
O Povo de 11-04-1932
A seca e a situação dos retirantes passaram então a ser segundo plano para o governo e para imprensa, que passou a dar maior ênfase aos acontecimentos do sul até o mês de outubro, quando o movimento em prol da constituinte foi diluído. A imprensa oficial tentava justificar o seu interesse no sul, através da defesa do “Golpe de 1930”, estabelecendo uma dicotomia norte-sul, como se o “Golpe de 1930” fosse benéfico para o norte e a sua ruptura só favorecesse ao sul.
Retirantes migram para a capital fugindo da seca. Crédito TV Verdes Mares
Do sertão cearense, assolado por mais um longo período de estiagem, partiam uma multidão de retirantes, verdadeiros refugiados da seca. Vinham do interior do estado em direção ao litoral, atraídas pela possibilidade de trabalho nas obras publicas urbanas.
A “Revolução” garantiria para o Norte uma posição favorável no jogo de forças políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superficialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, considerado pelas elites locais como principal fator de sua decadência. O jornal O Povo, portanto, imediatamente aprova a criação do “segundo Batalhão provisório destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da Ditadura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredidas pelos reacionários paulistas”. A “inoportuna rebelião paulista”, segundo o jornal, “traz, em seu bojo, uma sede de domínio que, se tivesse de ser saciada, acarretaria a desgraça do “Norte”, já que a “hegemonia paulista sempre foi funesta aos nossos interesses regionais”. A “Revolução de 30”, ao contrário, veio “criar para o Norte condições próprias até então desconhecidas.” (NEVES, 2000, p. 136 e 137).
Na capital, eram enviados aos Campos de Concentração. Crédito TV Verdes Mares
Tentando evitar a instalação destas famílias nos centros urbanos, o governo decide, como medida de contenção deste fluxo migratório, a instalação de estruturas em locais estratégicos as quais dava o nome de campos de concentração. Este era o termo oficial usado pelo governo, inclusive para tratar do assunto nos jornais da época.
A negligência da imprensa em relação à seca até o mês de outubro foi justificada pelo interesse em manter a continuidade do governo provisório que, segundo acreditavam, favorecia os “interesses” regionais, legitimada como sendo necessária para garantir a autonomia do “Norte”. Enquanto isso, os campos de concentração¹ foram esquecidos na imprensa, apesar das verbas do Ministério da Viação continuar chegando ao estado do Ceará. Porém, mesmo num contexto tão repleto de conflitos políticos, o Estado conseguiu agir de maneira centralizada e organizada.
É possível verificar essa organização e centralização com a implantação das interventorias, que refletiu diretamente na maneira de se combater a seca no estado do Ceará. Os retirantes não estavam mais tão esperançosos de receber viveres, ou qualquer outra ajuda da iniciativa privada. Agora isso ficava a cargo do Estado que controlava a economia.
“Por decreto nº. 796, de 17 de outubro de 1932, foi criada, em substituição ao comissário de alimentação, a comissão de abastecimento público, que ficou incubada da fiscalização de todo o território do Estado”.
Com a criação da comissão de abastecimento público, todo comerciante ficou impossibilitado de reter gêneros alimentícios em seus estabelecimentos ou depósitos, com o intuito de provocar elevação de preços. Aqueles que tentassem infringir, - não foram poucos, os infratores – seria condenado a multar de 500 $ 000 a 1: 000 $ 000, e ao dobro, nas reincidências.” (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P. 65.)
O governo estava agindo de forma mais centralizada, controlando até mesmo as oscilações nos preços dos alimentos. O governo efetivou o combate à seca através da articulação dos seus órgãos, que no caso são: IFOCS (Inspetoria de Obras Contra a Seca), Interventoria Federal que tem a frente o Interventor Roberto Carneiro de Mendonça e Ministério de Viação e obras públicas dirigido pelo ministro José Américo de Almeida. Essa articulação se concretiza através do departamento de secas. Podemos perceber essa relação através de uma matéria do jornal O Povo cujo título era “Plano de socorro às vítimas da seca”. A matéria dizia o seguinte:
O Povo de 21-01-1932
Para o governo as migrações volumosas de pessoas “esfomeadas” era um perigo constante para a capital, ao passo que eles poderiam trazer doenças contagiosas, além de outras “inconveniências” que uma miríade de retirantes mobilizados poderia causar à cidade e ao governo. Foi estabelecido nesse momento um serviço de assistência ao flagelado, que tinha uma preocupação notória com o controle da população e a prevenção de doenças. Sendo interessante transcrever uma parte do relatório do Interventor federal, que mostra como funcionava, segundo ele:
Desde aquele ano, início do grande êxodo das populações sertanejas em face da tragédia climática já declarada, pesando a responsabilidade que nos cabia em função do perigo que representava brusca dessa massa humana inteiramente desprovida de conhecimentos que pudessem interessar à sua defesa sanitária, foram tomadas as primeiras medidas de amparo e salvaguarda. Medindo bem a gravidade e a extensão do problema e não fugindo a ele, deu-se começo a um serviço de assistência e prevenção, que obteve, conseguindo-se com esforço sobre-humano defender o Estado da projeção de epidemias muito mais devastadoras do que as que se apresentavam. De saída a luta restringiu-se aos próprios recursos do Estado e aos pequenos auxílios do governo central, seguida mais adiante pela população da cruz vermelha, vindo tempo após o Ministro da Viação em socorro, por intermédio de um contrato com esta interventoria, elaborando-se assim o projeto definido de organização dos serviços de assistência médicas aos flagelados do Ceará, anexada a D.S.P em virtude de suas cláusulas. Por este acordo os serviços abrangeriam os operários da I.F.O.C.S e os campos de concentração, compreendendo 18 postos, 5 residências sanitárias e 4 hospitais, construídos também de seções matrizes de Direção, contabilidade, farmácia, almoxarifado e expedição, incluída ainda a mantença de 80 leitos destinados às crianças retirantes. Tinham os postos como objetivo os cuidados de prevenção contra doenças contagiosas assistência médica cirúrgica a enfermos e acidentados, a fiscalização dos gêneros alimentícios, o controle de estatística vital e a propaganda e educação sanitárias”. (Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará. P.124 - Pintura: Retirantes de Portinari)
Outro elemento importante é como o governo enxergava o costume dos retirantes, que “eram inteiramente desprovido de conhecimentos que pudessem interessar a sua defesa sanitária”. Podemos notar a comparação em tom de escárnio em relação à higiene dos retirantes. Trata-se de uma contradição aos padrões de assepsia moderna, que a elite fortalezense almejava, sendo, portanto, o papel da Interventoria educar aquela população aos padrões “normais” de higiene.
Prédio da Inspetoria de Obras contra as Secas. Acervo Nilson Cruz
Apesar das migrações não serem uma especificidade da seca de 1932, a peculiaridade desta seca é sua relação com o aprofundamento do processo de favelização da capital, e com o protejo de modernização do governo. Entre 1930-1955 surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Zé Padre² no Otávio Bonfim (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933)³, Morro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papouquinho* no Dias Macedo (1950), Estrada de Ferro (1954).
*A favela do Papouquinho foi a primeira favela a surgir no Bairro Dias Macedo, tendo origem num processo de invasão de terreno por famílias provindas, em sua maioria, do interior do Ceará.
Cercado do Zé Padre/Mucuripe/Lagamar
A seca acelera um processo de aprofundamento das contradições do espaço urbano de Fortaleza, na medida em que os retirantes, quando chegam à capital, precisam de moradias. Neste ponto entra o projeto do governo, a especulação mobiliária, o poder das classes abastadas, no sentido de afastar os flagelados da zona central e tangenciá-los para as favelas. Pois não era do interesse da elite que essa população ocupasse as áreas nobres da cidade, ou melhor, as áreas mais modernas e urbanizadas. Os retirantes poderiam servir para essa elite como exploração de mão de obra barata no desenvolvimento da urbanização da cidade, mas jamais poderiam servir como “vizinhos”.
Planta da cidade de Fortaleza de 1932, indicando a localização dos Campos de Concentração do Matadouro e Urubu (Apud RIOS: 1998, 74).
² O Cercado do Zé Padre era um imenso areal ao norte do Jardim Japonês, ao sul da Praça São Sebastião, após um açude onde as lavadeiras das redondezas lavavam suas roupas. (Diário do Nordeste)
³ É necessário fazer uma observação sobre a favela do Lagamar. A citação do (Silva, 1992) foi extraída do documento organizado pelo Governo do Estado, intitulado Migrações para Fortaleza em 1967. O problema é que, no referido documento, a favela do Lagamar é datada de 1953, e não 1933 como mostra Silva. O debate do inicio da favela não é uma questão menor. Diferentemente do Mucuripe, Pirambu, Arraial Moura Brasil, que em 1933 já eram favelas com razoável número de moradores, o Lagamar começa a constituir as primeiras habitações após a seca, como demonstra o depoimento da Maria Lagamar. “A favela do Lagamar surge em 1933, momento em que estava sendo construída a BR-116 no antigo Caminho de Messejana, acesso para quem vinha do sul, centro e sudeste do Estado. O terreno era irregular e alagado e foi sendo ocupado por retirantes da seca. "Aqui era só lama, mato e espin... Eu cavei um buraco, formou um olho d´água que era um amor... Aí é que foi chegando gente", diz dona Maria Custódio da Silva, a Maria Lagamar, uma das primeiras moradoras do local, em depoimento ao pesquisador Luiz Távora. Segundo a moradora, o próprio nome do bairro advém dela. A questão é que se os primeiros habitantes do Lagamar começam a chegar no local em 1933, não podemos dizer que ali já se encontrava uma favela. Isso demonstra que a seca de 1932 contribui para a gênese desse processo, e não secas anteriores como Mucuripe e Pirambu.
Leia também:
A Seca e a Modernidade da Capital
Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fontes: NEVES, Frederico de castro. A multidão e a História: saques e outras ações de massa no Ceará. Rio de Janeiro: Relume Dumará./ Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./SILVA FILHO, Antonio Luiz Macedo e. Imagens da Cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2002./ Biblioo Cultura Informacional