Fortaleza Nobre | Resgatando a Fortaleza antiga
Fortaleza, uma cidade em TrAnSfOrMaÇãO!!!


Blog sobre essa linda cidade, com suas praias maravilhosas, seu povo acolhedor e seus bairros históricos.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Coluna da Hora - A polêmica em torno da construção do monumento


Construção da Coluna da Hora na Praça do Ferreira.
Acervo Ricardo Figueiroa

“ Do pó, do nada do chão,
Vai subindo céus afora,
Numa sublime ascensão,
A tal Coluna da Hora.
Nos velhos tempos de outrora,
A tal Coluna da Hora,
Causaria sensação!
Talvez, ficasse na história
Da princesa Teodora
O nome do seu Girão”.

Feira de Missangas

A construção da Coluna da Hora constituiu um importante marco no projeto de modernização da capital.
A ideia não era recente, pois desde a administração do major Tibúrcio Cavalcante, a Prefeitura já cogitava este melhoramento urbano. Em dezembro o major licenciou-se e foi ao Rio, incumbido de procurar um relógio adequado a Praça do Ferreira. Seus esforços foram, porém, baldados. Nem no Rio nem em São Paulo encontrou um que o satisfizesse. Consigo levara também plantas e fotografias das quatro faces da referida praça. Confiando a organização do projeto da Coluna a uma comissão de três membros, entre os quais se achavam os arquitetos Ruderico Pimentel e o capitão Ruy de Almeida. Cada um apresentou o seu projeto, chegando todos a conclusão, pela média das alturas dos prédios, que a Coluna devia ter a elevação de 10 a 12 metros.

Jornal A Razão de 02  Jun 1936
Porém, nenhum desses projetos apresentados foi aprovado pelo Estado, com alegação de não consultar o “senso estético do local”. O arquiteto da Prefeitura, também apresentou três projetos que foram sumariamente recusados. Ficou a cargo do engenheiro e arquiteto José Justa, apresentar um projeto definitivo. Também foram solicitados catálogos e preços de relógios europeus, através das firmas Alfredo Salgado, Gradovhl & Fils, Dumar & Cia e Antônio Fiúsa, contudo também resultou em nada. Após esses impasses, foi criada outra comissão, composta pelo Dr. Ernesto Pouchain e pelos relojoeiros Abílio Silva e Milton Muratori, para julgar a licitação mais vantajosa, em relação ao relógio. A comissão aprovou a proposta da firma Byington Co, que tinha filial em Recife, pois apresentou o menor preço, garantindo entregar o relógio todo montado pela quantia de 20 contos de réis. Depois foi aberta outra licitação para saber qual a empresa que iria construir a Coluna.

"Apresentaram-se dois concorrentes: Dr.Antônio Urbano de Almeida e o Sr.Clóvis Janja, aquele prontificando-se a edificá-la por 29:300$, e este por 28:690$. Como estava fixado no orçamento municipal, não ultrapassar a referida construção de 25 contos, condicionou a proposta vencedora a uma redução de preço”. (O Nordeste, 01/09/1933, p. 05)


Isso foi aceito pelo senhor Janja, todavia, a história do relógio e da coluna, tinha apenas começado. A primeira polêmica acerca da construção da Coluna ocorreu devido ao coreto que existia na Praça, o qual nunca conseguiu agradar gregos e troianos. Havia aqueles que defendiam sua importância histórica e política, pois ele era frequentemente utilizado para proferir discursos sobre a cidade, problemas sociais, ou mesmo propagandas políticas. E existiam aqueles que o tratavam com escárnio, menosprezando o seu estilo arquitetônico, alcunhando-o de feio, antiquado e obsoleto.
1930. No velho coreto, o célebre discurso do Dr. Morais Correia durante a campanha que levou Fernandes Távora ao Governo Provisório, e a queda do prefeito Cesar Cals ( Foto O Povo). Acervo Lucas
Vai ser demolido o coreto da Avenida 7 de Setembro, na Praça do Ferreira. Do ponto de vista estético é, não resta dúvida, providência que se justifica, pois aquilo não é lá coisa que se recomende, apesar de ter custado ao que se diz- mais da metade de uma centena de contos... Caro e feio. Mas tinha além da serventia para as retretas aos domingos, a de ser tribuna dos demagogos, desde os mais sisudos aos mais implumes ensaístas da oratória. Muita gente pregou ali ideias de todo quilate. Ouviram-se dali, palavras de fogo e asneira de palha. Oradores aclamados, aplaudidos, vaiados e apeados. Alguma coisa de histórico... E onde será, agora, a tribuna da oratória popular? Nos pisos da Coluna do relógio? (O Nordeste, 02/08/1933 p 03).
Praça do Ferreira por volta de 1920. Vemos o coreto em dois tempos, sem e com a cobertura.
Jornal A Razão de 13  Jun 1937.
Jornal A Razão de
15  Jun 1937
E onde os demagogos falarão agora? Este foi o título da matéria do Nordeste, acima citado. Para o matutino, o coreto era um espaço, essencialmente, das expressões de demagogos, que tinha lá seu valor histórico, apesar de ter custado muito caro e ser feio. Mas que, de certa forma, a sua demolição era justificável, não fazendo tanto alarde a esse respeito. No sentido oposto, o jornal A Rua saiu em defesa da manutenção do objeto em questão, justificando como espaço da expressão e liberdade do povo, e acusando o Prefeito de ter Passadofobia.

Não houve apelos, não houve razões, por mais ponderosas que fossem que demovessem o “futuroso” Prefeito da nossa Urbe da sua temível sanha de aniquilar o passado. É um homem teimoso, e sua “passadofobia” não tem limites. Por isso, o coreto do jardim da Praça do Ferreira, presentemente atingida por um terremoto vai desaparecer, está desaparecendo. As picaretas do estadista de Morada Nova manejadas por mãos hábeis e possantes, já, a estas horas põem por terra a verdadeira tribuna do povo livre do Ceará. (A RUA, 12/10/1933 p 01).

O periódico continua fazendo um resgate da importância histórica do coreto na derrubada de governos conservadores e antiliberais. Não obstante, o que está em jogo não é a defesa do coreto como objeto de relevância histórica e operacional para o desenvolvimento da liberdade do povo cearense, mas a crítica ao projeto de modernização de Raimundo Girão, onde o coreto é apenas um elemento simbólico da retórica de oposição. Os argumentos de defesa do velho e de críticas ao novo, mesmo envolvido de uma epiderme lógica e racional, se sustentam numa “retórica da nostalgia” como aspecto substancial da negação, na medida em que as reminiscências sentimentais são erigidas como o sustentáculo da defesa da tradição e da crítica à mudança.

Jornal A Razão de
03  Out 1937
Começou, há dias, a demolição do coreto da Praça do Ferreira. O jovem governador da cidade não se sente bem com o passado. Tem uma verdadeira volúpia pelo modernismo. Arrasou a Praça do Ferreira pelo prazer de construir para o futuro. [...] Mas é preciso demolir tudo. Como Julião, o Apostata, quer lavar Fortaleza de toda nódoa da administração do passado. Deixar incólume o coreto da 7 de Setembro é fazer obra incompleta. É que nas suas paredes está a inscrição, em vernáculo, da remodelação do jardim, na administração do Dr Godofredo Maciel Daí o pesadelo do jovem Chefe da Edilidade. Acha que a cidade de Fortaleza veio a lume, ressurgiu do nada graças aos seus esforços! [...] Enquanto houver dinheiro, estamos certos, o jovem Governador do município, derruirá tudo. Constatando com esta febre de reformas, a pobreza esfarrapada anda esmolando a caridade pública, pelos passeios da cidade. Mas, como já disse o Sr., a pobreza não vale nada. Vale mais um palmo de pavimentação a concreto do que um abrigo para as crianças pobres. São palavras do facundioso chefe do executivo municipal. E não há lógica que sirva. O coreto entrou há dias no pano das reforma... A picareta entrou em cena, sem contemplação! Pobre passado! (IDEM, 10/10/1933 p 03).
Praça do Ferreira nas primeiras décadas do Século XX. Entrada para o Jardim 7 de Setembro, construído pelo intendente Guilherme Rocha em 1902 e demolido pelo prefeito Godofredo Maciel em 1920. Ao fundo, na lateral direita da foto, avista-se a torre do prédio da Intendência Municipal (Prefeitura). Acervo Duarte Dias
Observamos, portanto, que o passado é o pano de fundo para uma crítica mais visceral ao projeto de modernização da cidade. Ao mesmo tempo em que a picareta do governo não para de executar reformas materiais que atenderão a uma pequena parcela da sociedade, a miséria em torno da cidade aumentara substancialmente. Também estava em questão, e o matutino aponta com sagacidade, a ofuscação das melhorias realizadas nas administrações passadas, pela administração hodierna. Cada Prefeito gostaria de deixar sua marca, ou ganhar o título de modernizador. Raimundo Girão não era indiferente a esses anseios.
Foto de 1952
No entanto, a destruição do coreto e a introdução da Coluna da Hora revelavam além desses aspectos políticos, uma tendência de uma cidade que se adaptava ao capitalismo, não apenas nos aspectos econômicos e políticos, mas culturais e simbólicos, pois a Coluna da Hora representava uma noção específica de temporalidade, o tempo do relógio, das horas de trabalho, das atividades programadas por segundos, minutos e horas, em detrimento de uma temporalidade essencialmente campesina, estigmatizada e norteada pela natureza. O tempo do relógio marca a imposição de novos costumes, de uma sociedade que está se industrializando, e que precisa “otimizar” o tempo da produção e circulação de mercadorias. Por isso, a construção de um marco regulador se fazia urgente!
Coluna da Hora em 1967 - Ana Teresa Mello Fiúza

Pelo navio “Sheridan”, chegaram a nossa capital os 8 volumes de que consta o material do novo relógio a ser instalado na coluna erigida á Praça do Ferreira. A remessa foi feita pela Casa Byington com matriz em São Paulo, e filial em Recife, sendo o relógio fabricado pela “Westing House”, E. U. da América.[...] O relógio como já é do conhecimento público, será movido a eletricidade, com 4 faces e dispositivos automáticos para darem a corda necessária. Esta é regulada por meio de pesos, que serão levantados, quando preciso, pelo maquinismo automático. Desta maneira, a intervenção que se requer é apenas em ordem a lubrificação e limpeza e ao bom andamento dos motores. A Fortaleza deverá chegar, brevemente, de avião, o Dr. Hermes Barroso de Lima, da filial Byington, do Recife, e que se vem encarregar da montagem do relógio. (O NORDESTE, 29/11/1933 p 4 e 5).

O relógio é apresentado como o mais moderno possível, não sendo quase necessário trabalho humano para regular, salvo em matéria de limpeza e manutenção, trazendo características que são sinônimos dos discursos da modernização como, “movido à eletricidade”, constituído de “dispositivos automáticos”, sendo ainda todo o material importado dos Estados Unidos. O relógio era um símbolo moderno em várias acepções! Em primeiro lugar, representava a instalação de uma nova temporalidade, industrial, urbana, afastando-se do tempo da natureza materializado no campo. E, em segundo lugar, o próprio “relógio em si” já era moderno na sua composição física.
Coluna da Hora em 1967 - Ana Teresa Mello Fiúza

De acordo com O Nordeste, o relógio custou 20.000$000, sem os impostos que teriam sido dispensados graças à intervenção do Interventor Carneiro de Mendonça. Caso tivesse que pagar os impostos, o custo sairia quase o dobro. Neste sentido, o maquinário foi apresentado como vantajoso para a municipalidade, e que seria inaugurado na véspera de Natal. Porém, nem tudo ocorreu como se esperava!

Descobriram depois que o relógio não cabe na cama que lhe arranjaram na tal Coluna do revolucionário desconhecido. Por último verificaram, por ocasião de examinarem a encomenda, que os quatros vidros que protegem o mostrador vieram quebrados. Será possível tanta urucubaca! Santo Deus, quando teremos hora oficial na cidade? (A RUA, 7/12/1933 p 01).

Segundo o jornal, além do material ter vindo já danificado e não caber no local da Coluna, ainda houve outro problema. “Rachou o pedestal da Coluna da Hora”. De acordo com o periódico, a base sofreu uma rachadura, prejudicando mais ainda o projeto do governo de inaugurar “a melhoria urbana”. A Praça do Ferreira e a Coluna da Hora eram o cartão postal do projeto de urbanização da prefeitura. Qualquer entrave na sua remodelação, de imediato já era denunciado nas páginas da imprensa, que não poupavam críticas quando se relacionava a tais “melhorias”. Todavia, a Coluna é inaugurada na virada do ano de 1933 para 1934, que, segundo o jornal O Povo, foi esperado por uma multidão de pessoas que se aglomeravam ao redor da Coluna, onde Raimundo Girão proferiu um discurso que foi irradiado através da Rádio Clube Ceará para a população que ali se encontrava.
Anos 30
A Coluna da Hora, no entanto, não foi o primeiro relógio da capital. De acordo com artigo de Antônio Theodorico da Costa, publicado no O Nordeste em 16 de novembro de 1934, p. 01 e 04, já havia sido instalado em 1854 o relógio da Catedral da Sé, depois outro relógio foi implantado no edifício da Estação Central, e um terceiro com caráter oficial no prédio da Intendência, onde funcionava a Prefeitura, na Rua Floriano Peixoto. No ano de 1922, também foi construído outro na coluna do Cristo Redentor, na Prainha, em comemoração à Independência do Brasil. Por conseguinte, este breve histórico sobre os relógios da cidade, mostra que a tentativa de estabelecer um padrão temporal, já vinha ocorrendo desde o final do século XIX, mas que ganha força e se materializa de forma mais concreta na década de 1930, uma vez que não se trata de um relógio instalado numa igreja, estação, ou órgão oficial do governo, mas fincado na Praça do Ferreira, e como diriam alguns dos escritores da época, a maior artéria econômica da capital.

 1958 - Na Praça do Ferreira, a Coluna da Hora maltratada
pela ganância da campanha política.
Parsival Barroso bateu o favorito da imprensa,
Virgílio Távora. (Tribuna do Ceará - Acervo Lucas)
Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/O NORDESTE, 01/09/1933 p. 05

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes (Parte II)


Praça do Ferreira na década de 30.
No projeto de urbanização de Raimundo Girão, a retirada dos trilhos dos bondes da Light era imprescindível, principalmente em se tratando da Praça do Ferreira, cartão postal da cidade. A relação da companhia com a prefeitura, que já não era boa, ficou num patamar de tensão ainda maior:

Jornal A Rua de 16 de Dez. de 1933 
Após essas exigências e impasses, um funcionário da Light foi tomar satisfação com o Prefeito, explicando que não tinha condições de funcionar desta forma. Porém, a mediação encontrada por Raimundo Girão foi permitir que os bondes pernoitassem fora da estação. O chefe da municipalidade havia deixado claro que “a modernização” das ruas e das praças estavam no topo da hierarquia, e qualquer empresa deveria se adaptar a esse projeto.


Vista aérea da cidade na década de 30. Vemos a chaminé da Usina Light, a catedral metropolitana e o Gasômetro. Arquivo Nirez
Foto da Rua Major Facundo com vista da
Praça do Ferreira em 1937
O governo compreendia a importância de controlar os transportes, como parte de um complexo social maior que ia desde o esquadrinhamento das ruas em traçado xadrez, para evitar barricadas e facilitar o tráfego de mercadorias e transeuntes, até o isolamento e marginalização dos pobres em bairros afastados do perímetro central. Enquanto a Light, ou qualquer outra empresa, não aceitassem as regras do jogo, os prejuízos só tenderiam a se elevar até a falência. Pois o Estado brasileiro, com a ascensão de Getúlio Vargas no poder, não estava mais entregue “a mão invisível do mercado” (a experiência de 1929 foi muito educativa sobre os problemas que “tal liberdade” poderia causar), mas, trava-se na época de um Estado interventorial, e que tudo queria controlar.
Percebemos a dimensão desse controle numa matéria do Correio do Ceará, referente ao trânsito de animais pela cidade:


Vendedores em seus burricos - Parque da Liberdade
Todos sabem que não se pode contar com o abastecimento de água do Acarape que falta desde as primeiras horas do dia até a noite. É imprescindível que se recorram aos vendedores ambulantes e se estes não podem transitar com seus burricos como é que vai ser?[...] A situação é, pois, desesperadora para os que ficam sem o precioso líquido do abastecimento público e não podem comprar porque é proibido animais transitarem pelas ruas calçadas a paralelepípedo ou a concreto. 


Vendedores de água no início da Rua Marechal Deodoro,
esquina com a Domingos Olímpio. Arquivo Nirez
[...] Se se permite que animais puxando carroças com rodas de borracha penetrem nas ruas, porque impedir o trânsito deles só porque não estão atrelados a um veículo? A Avenida João Pessoa é calçada a concreto em toda a extensão do Benfica a Porangaba. Entretanto, por ali transitam, sem proibição nenhuma, animais de toda a espécie, sem que dali resulte qualquer dano ao calçamento. Reflita bem o Sr. Prefeito sobre os embaraços que essa medida ocasiona ao comércio e a população em geral e verá que convém revogá-la em bem do público e para maior simpatia da administração municipal. (CORREIO DO CEARÁ, 04/10/1934 p 01).

Praça do Ferreira na década de 30. Arquivo Nirez
A prefeitura proibiu os animais transitarem em algumas ruas do Centro da cidade que foram calçadas a paralelepípedo ou a concreto, alegando que poderia danificar o material do calçamento. Sendo que boa parte do abastecimento de água, venda de diversos produtos como frutas e outros gêneros de primeira necessidade, ainda eram realizado por ambulantes conduzindo as mercadorias nos animais. A contradição aumenta quando o periódico cita que da Avenida João Pessoa a Porangaba, os animais transitam sem nenhuma fiscalização, e mesmo assim não causaram dano algum no concreto. Na verdade, o que podemos inferir dessa medida da prefeitura, é que ela queria afastar os animais do perímetro central, escopo principal da modernização, lócus do comércio e anfiteatro do desenvolvimento, pois, como a Avenida João Pessoa ficava um pouco afastada do centro, sem falar da Porangaba (Atual Parangaba), que era ainda mais distante, não carecia de tanta fiscalização.


Praça Clóvis Beviláqua (Ainda sem a Faculdade de Direito) em 1931.
Arquivo Nirez
Dessa forma, animais transitando pelas artérias centrais causariam contrastes com a remodelação do centro, praças reformadas, introdução de novos cinemas, teatros, clubes recreativos, toda uma série de equipamentos modernos que estavam sendo instalados em Fortaleza na época. A modernização não foi apenas um projeto econômico e político, mas também estético e cultural. 


Praça do Ferreira em 1934. Vemos ao lado do Cine Majestic, o Cine Polytheama. arquivo Nirez
O centro de Fortaleza foi remodelado como síntese de diversos processos convergentes e antagônicos. Só tem sentido em pensar nas reformas materiais das ruas, praças, avenidas, modernização do sistema de transporte, se comparado com a ausência dessas infraestruturas nos bairros mais afastados, nas favelas e nos subúrbios. O que houve no centro da capital foi uma dialética da modernização, uma relação tensa entre o todo e as partes, entre os anseios da população e o projeto de Raimundo Girão, entre a remodelação de algumas ruas e o total abandono de outras, entre uma Fortaleza que se queria moderna ao preço de expurgar costumes e valores rurais.

Veja AQUI a parte I

Leia também:
As melhorias urbanas durante a seca de 1932
A Seca e a Modernidade da Capital
A Seca, o conflito político e a favelização da capital
Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

domingo, 19 de novembro de 2017

O Centro no "centro" das atenções - Retirada dos trilhos dos bondes


Fortaleza nos anos 30. Acervo de Carlos Augusto Rocha

Praça do Cristo Redentor com a rua Rufino de Alencar
ao fundo. Foto dos anos 20. 
O Sr. Governador da cidade deveria lançar as suas vistas para a Rua Rufino de Alencar, mais conhecida por Ladeira da Prainha. Por ali ainda não se passou o fio de pedra. Nem sequer o chefe da edilidade teve a boa vontade de mandar acertar o calçamento pontiagudo daquela via pública. Parece que o mesmo tem contrato com alguma fábrica de calçados. Os pisos dos passeios têm aspectos de uma escada. Uma verdadeira “montanha russa”....Cheia de altos e baixos. Os transeuntes vencem, de ida e volta aquele trajeto com maior sacrifício. Ora, a Rua Rufino fica situada no centro da cidade, ao lado do palácio Arquiepiscopal. Não se compreende, portanto, o abandono em que o tem deixado o Mairé da cidade. Além da falta de estética, logo no começo da Rua, no bifurcamento da Praça da Sé com a Rua São José, levanta-se um grande areal. Se o Sr. Prefeito tem olhos para ver a Praça do Ferreira, parece se descuidar do resto da nossa capital. (Jornal A Rua, 27/10/1933 p. 03).

Rua Major Facundo, 1930. Arquivo Nirez
Na década de 30 (se bem que hoje não é tão diferente assim....), esse “descuido”, ou negligência com os demais logradouros da cidade não era por acaso. A remodelação da capital, ao contrário do que pensavam alguns jornais citadinos, não se devia à falta de planejamento urbano, mas justamente o oposto. Existia um planejamento que beneficiava uma parte da cidade, tendo em vista principalmente o desenvolvimento do comércio e dos chamados bairros “aristocráticos”. A urbanização do Centro expressava interesses de dirigentes políticos, e de setores da classe capitalista. Não se tratava de um processo caótico e desordenado, mas de uma lógica que tinha como prioridade atender a demanda do Capital, seja ele ligado ao comércio, construção civil, transporte, importação e exportação. Não podemos entender o processo de urbanização de Fortaleza, se não considerarmos o papel que exerceu a necessidade de acumulação de capital, refletindo até na prioridade de reformar, equipar e sanear alguns bairros, em detrimento do abandono de outros.

Imposto sobre os meios fios. Jornal A Razão 11 de junho de 1929
A urbanização de Fortaleza foi resultado de um campo de disputas, de uma luta entre os diversos setores sociais. No caso do governo, estava claro que se tratava de um projeto, pois na época foi criado até um imposto sobre os meios fios, e quem não pagasse no prazo, acarretaria multa. Portanto, o governo crivava fontes de rendas voltadas, exclusivamente, para a construção de ruas. Mas as obras nem sempre correspondiam às expectativas, e às vezes eram motivos de chacotas na imprensa.

Rua Guilherme Rocha, final da década de 30.

Jornal A Razão de
25 de Fev de 1938
Por toda a parte observa-se uma falha no trabalho. Ora, é um bueiro, ora é um arremate mal feito, deixando, as vistas do público, o aspecto do desmantelo prefeitural. O paralelepípedo que estão sentando é tão áspero que tem a aparência do antigo calçamento. Corre até uma pilheria a respeito. Um paraense ironizando o trabalho, disse que aquilo não era paralelepípedo, mas cearenselepípedo. Ontem, ao passarmos pela Rua Dr. Pedro Borges, verificamos que o concreto, que se está fazendo, naquele trecho, nas mediações da Padaria Italiana, é trabalho de tapiação, pois que o concreto é sentado sobre uma camada de areia. Pelo menos, é o que se nota nas extremidades. De modo que a espessura da massa é diminuta, não correspondendo ao que ficou estipulado da firma empreiteira com nossa edilidade. (IDEM, 10/11/1933 p. 01).

À medida que a remodelação da cidade ocorria, as críticas na imprensa acompanhavam nas mesmas dimensões. Todavia, também existiam elogios sobre o aspecto estético da cidade, no sentido de uma urbe moderna, bela, nos parâmetros da “civilização europeia”. Os adjetivos sempre salientavam os equipamentos modernos, a arquitetura dos prédios, o desenvolvimento do comércio, a suntuosidade das sedes administrativas, os recursos de transporte e iluminação, todos apresentados como indispensável e essencial de um estereótipo de cidade moderna. Não obstante, mesmo os periódicos que teciam críticas “cauterizantes” à administração de Raimundo Girão, faziam reverência a Fortaleza como símbolo da modernidade.

Jornal A Razão de 10 de Nov de 1937
Jornal A Razão

É empolgante. Possui prédios colossais como o “Hospital de Santo Antônio dos Pobres”. O cinema como não há igual no sul do Estado; o prédio dos Correios e Telégraphos; o luxuoso Palacete Benevides; sedes da Associação Comercial e da União Artística; a igreja matriz; estação da R.V.C.; Usina C. I. D. A. O; Villa Margarida, Prefeitura, e outros. Duas lindas avenidas. Iluminação elétrica de primeira ordem. (O NORDESTE, 17/03/1934 p. 06).

Jornal A Razão de 10 de Março de 1938
Jornal A Razão
Trata-se de mais um dos paradoxos da modernidade. A elite que pertence ao local não deseja representá-lo como arcaico, prosaico, ou obsoleto. A modernidade adquire tanto um sentido denotativo, de expressão material das ruas e prédios da cidade, do novo suplantando o velho, como uma acepção conotativa, onde a população sintetiza valores “eurocêntricos”, desejando adquirir costumes e culturas de outro padrão societal. O moderno era almejado como um horizonte a ser seguido, ao qual toda a população citadina deveria se adaptar sem nenhuma denegação. Portanto, além de uma pavimentação nova e esteticamente bonita, a capital precisaria ter um sistema de transporte urbano novo e eficiente. A “mobilidade urbana”, para usarmos uma expressão hodierna, foi um dos problemas da modernização de Fortaleza, protagonizando lutas titânicas entre a prefeitura e a Light¹, empresa que exercia o monopólio do transporte na época. Uma dessas lutas ocorreu devido à reforma da Praça do Ferreira, e a prefeitura, no caso, criou um decreto para retirar os trilhos da Ligth, pois estaria atrapalhando a tal reforma e, segundo o prefeito, também estava causando congestionamento no local.

Rua Major Facundo no final da década de 30.

Jornal A Razão de 1931
Isto é o cúmulo. E falta de senso político. O chefe do executivo municipal deve convir que os trilhos da Light não podem ser removidos de um momento para o outro, e ao sabor de um desejo pessoal, da Praça do Ferreira para outro qualquer ponto da cidade. Quanto a rescisão do contrato, é pilheria que não vale a pena nem falar. Nós não temos alcance para capital de tão arrojada empresa. Salvo se desejamos voltar aos antigos bondes de burro.... (A RUA, 29/08/1933 p. 03).

O jornal A Rua, como o veículo que fazia oposição aberta ao prefeito sai em defesa da empresa, alegando arbitrariedade por parte de Raimundo Girão, que tinha ameaçado romper o contrato com a Light, caso ela não retirasse os trilhos da Praça do Ferreira. Porém, a problemática era muito mais complexa, tratava-se, além da questão da referida praça, uma discussão sobre o monopólio dos transportes urbanos. Era uma estrutura arcaica, para um capitalismo que “necessitava de concorrência”. Sem falar que a cidade estava se expandindo, a população aumentando, os subúrbios crescendo, e alargando a distância dos trabalhadores para os seus locais de trabalho. O transporte não poderia ficar fora do projeto de modernização do Estado. Neste sentido, a intervenção do Estado no sistema de transporte se tornara inevitável. O que poderia variar seriam os aspectos dessa intervenção.

A última nota da prefeitura proibindo que viajem mais de 4 passageiros nos bondes da Light, não traz nenhum benefício a população. Ao contrário, acarreta prejuízos. As classes pobres não se utilizam dos ônibus, já pelo preço, que é mais caro, como também porque eles reclamam um traje mais descente. Resulta daí que o número de veículos, em determinadas horas do dia, é insuficiente para lotar os passageiros, e estes ficam naturalmente prejudicados com a nova invenção da prefeitura. Se tal providência é posta em prática com o objetivo de ferir a companhia inglesa, vá lá, nada temos a ver com isso. Acreditamos, porém, que não há de ser com esses processos que a municipalidade consiga que a Light retire os seus trilhos da Praça do Ferreira. (IDEM, 31/10/1933 p 01).

Existiam na época dois tipos de transporte que atendiam a maioria da população, os bondes e os auto-ônibus. Os bondes representavam o passado, o velho, com suas instalações antigas, serviço precário, com excessivas reclamações dos habitantes da urbe. Já os auto-ônibus, surgiram como o moderno, mais novo, mais flexível, visto que não necessitava de trilhos fixos para se locomover. Mais rapidez no transporte do trabalhador para o seu serviço, refletindo as necessidades de uma cidade que crescia e se desenvolvia.
A contenda com a Light figurava, além da questão do monopólio dos bondes, a necessidade de substituir um transporte obsoleto por um mais moderno. Por isso, acreditamos que Raimundo Girão restringiu os números de passageiros dos bondes, com o seu intuito de diminuir a quantidade de lucro da empresa, e incentivar a propagação do auto-ônibus, uma vez que a Ligth detinha o monopólio dos bondes, mas não dos auto-ônibus. Raimundo Girão também estava consciente da difícil fase que passava a empresa inglesa, pois a maioria dos países ainda estava, de maneira lenta, se recuperando da crise de 1929, e a Light não era “imune” a essa situação.

A fotografia dos anos 30 nos mostra um bonde elétrico da Ceará Tramways, Light & Power em Fortaleza. Está perto da Praça do Ferreira, na rua Pedro Borges esquina com Floriano Peixoto, em Frente à Mercearia Leão do Sul
Ônibus Ford - V8, ano 1936, carroceria de madeira,
fabricado em Fortaleza.
Pensará a municipalidade que Fortaleza é um ótimo campo de exploração para os serviços de transporte a cargo da empresa inglesa? Jornais de Londres anunciam, conforme estamos informados, exatamente o contrário. Dizem que as ações (debêntures) da Light, cujo valor nominal é de 100, estão sendo cotadas na bolsa da capital inglesa ao preço de 24,5. A notícia, a ter o fundamento que á mesma atribuímos, demonstra eloquentemente que a companhia estrangeira não está disposta a agravar uma situação já precária. Se a prefeitura quer tirar os trilhos da Praça do Ferreira sem ônus para empresa, deve fazê-lo. Sobrecarregando a companhia de maiores despesas é que não vai, salvo medidas vexatórias que de certo não hão de ser lá muito aconselháveis....(IBIDEM, 07/11/1933 p 01).

Fortaleza em 1930
Os auto-ônibus na Guilherme Rocha
Diante do texto do jornal, é quase certo que o prefeito sabia exatamente como andava a companhia, o que justificava ainda mais as suas medidas antilucrativas para com a empresa. Além do mais, o próprio jornal já modificou o seu discurso, edulcorando um pouco a linguagem, pois, “se a prefeitura que tirar os trilhos da Praça do Ferreira deve fazê-lo”, mas sem acarretar um “ônus” para empresa. Porém, era provavelmente esse ônus o alvo de Raimundo Girão. A Light passou muito tempo sem investir em equipamentos novos e renovação da frota, sem falar que “trilhos” não combinavam com o projeto urbanístico do governo. A relação de tensão da prefeitura com a companhia era bem mais complexa do que se supunham os periódicos da época, pois representavam dois projetos antagônicos, em várias dimensões: monopólio/concorrência; bondes/auto-ônibus; trilhos/pavimentação em concreto; e todas essas contradições tinham como pano de fundo o projeto de modernização do Estado. O que convergisse para o desenvolvimento do projeto seria mantido, ao mesmo tempo em que, os obstáculos seriam “extirpados” do meio do caminho da “modernidade”.

Capital cearense na década de 30. Arquivo Nirez
¹ “Concessionária do serviço de luz, força e viação elétrica no município de Fortaleza, a The Ceará Tramway, Light and Power C, Ltda, tem seu escritório na Rua Barão do Rio Branco nº 844. Tem como gerente o Cel. Francis Reginald Hull, e sub-gerente o Sr. João Batista de Paula. A extensão atual de sua linha é de 20 kms, tendo 38 bondes no tráfego, e 11 auto-ônibus. O número de passageiros transportados, nos bondes, no último ano 16.800.000, em ônibus 2. 160.000. Tem 7.200 consumidores de luz, e 480 de força”. Almanach administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1934 confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica. P. 257


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Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.

Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/Arquivo Nirez

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O Centro e o conflito da Modernização na década de 30 - Parte II


Praça do Palácio (Atual General Tibúrcio) antes do aterro. Álbum Vistas do Ceará 1908

Foto ao lado: Rua São Paulo com a praça à direita.

Em consequência da torrencial chuva desta manhã, veio a desabar parte da muralha de arrimo do Aterro da Praça General Tibúrcio, canto da Rua São Paulo, local onde ultimamente a Prefeitura planejava construir mictórios públicos. Embargada a obra já iniciada, trataram de reconstruir a parede e o fizeram sem a necessária solidez, causa do desmoronamento desta manhã. (CORREIO DO CEARÁ, 20/12/1934. P. 08).

Álbum Vistas do Ceará 1908

Como era e como ficou depois do aterro. 
Foto1: Acervo Carlos Augusto/Foto2: Relatório do Interventor Federal Carneiro de Mendonça 1931-1934

O desabamento do aterro da Praça General Tibúrcio, noticiada pelo Correio do Ceará, como “Serviço mal feito”, nos deixa claro como o processo de remodelação do centro se efetuava com percalços pelo caminho, pois desabamento de aterros, acidentes de trânsito causados pelas obras, acidentes de trabalho nas construções, dentre outros, ocorria com uma assiduidade espantosa que já se tornara uma característica congênita do processo de urbanização da cidade. Fortaleza era na época um “canteiro de obras a céu aberto”. Porém, um canteiro sem uma infraestrutura segura para os operários e transeuntes, como verificado no caso do desabamento do Arco do Triunfo, na Rua Major Facundo, uma das mais importantes do perímetro central. Na época, quase toda a cidade estava eufórica com a visita de Getúlio Vargas, veiculada em todos os jornais da urbe como um grande acontecimento, até mesmo pelos matutinos que criticavam Getúlio, como ditador. Portanto, a cidade deveria estar bonita e “enfeitada”, para transmitir uma “boa imagem” da administração local.

 População aguarda ansiosa a chegada de Getúlio Vargas em frente a Estação Central
Fotos Acervo Assis Lima

Ontem cerca das 23, ½ horas, deu-se um horrível desastre do qual quase que perecem sem vida seis operários, a serviço da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Estava em construção, há alguns dias, no trecho da Rua Major Facundo, esquina com a Travessa Senador Alencar, um arco em que seriam colocadas flores naturais, para o fim de ser saudado, com elas, a entrada da nossa cidade, o Sr. Chefe do governo provisório. Naquela hora, a mandado do humanitário Prefeito da Capital, uma turba de trabalhadores foi desobstruir o referido arco, pois, com a notícia da chegada, hoje a tarde, do Sr. Getúlio Vargas, todos os esforços seriam perdidos em concluir a obra em tempo. Quando despregavam as primeiras taboas, veio abaixo toda a armação, resultando da catástrofe saírem cincos operários com sérios ferimentos nos membros, e um contorcionado gravemente. (A RUA, 17/09/1933. P 02).

Rua Major Facundo

Após o acidente, os operários foram levados pela polícia para a Santa Casa de Misericórdia, onde receberam atendimento. Na verdade, era muito importante para Raimundo Girão, como administrador da cidade, apresentar Fortaleza como uma cidade “moderna”, resultado do seu trabalho. Pois, além dessa boa imagem garantir a sua permanência no poder, poderia receber mais incentivos financeiros para efetuar a modernização da Capital, visto que uma boa parte dos recursos era oriunda do Governo Federal. Para tanto, não bastava reformar as ruas, praças, logradouros etc., era necessário “vendê-la” como um arquétipo da modernidade, onde o centro era a sua vitrine principal. Os aspectos obsoletos, arcaicos, anti-modernos da Capital, como as favelas e os areais, deveria ser ocultada da visita de Getúlio.
A dinâmica da cidade foi transfigurada, nos dias 17 a 20 de setembro de 1933, período da estadia de Getúlio Vargas, as obras de calçamento das ruas tiveram que sofrer alterações no “calor da visita”, para resplandecer, cintilar, somente os aspectos positivos da urbanização.

Grande concentração de apoio a Getúlio Vargas na Praça do Ferreira. Acervo Lucas

Agora, porém, com a passagem da comitiva presidencial, o Sr. Prefeito deu nova feição aos trabalhos. Por quê? Ninguém sabe. O certo é que ele mandou que a picareta da prefeitura, desordenadamente, arbitrariamente, desalojasse todas as pedras de algumas travessas, e simultaneamente da Praça do Ferreira, de forma que hoje, ninguém mais pode andar por aqueles sítios. [..] Ontem, por exemplo, o mau serviço culminou. Ninguém sabia onde pisar. Tinha-se a ideia que um terremoto deslocara o empedramento da cidade, fazendo um estrago irremediável. (O NORDESTE 23/09/1933 p 04).

Porém, o que notamos é que a imagem construída pelo O Nordeste divergiu do projeto do Prefeito. O matutino na mesma matéria, ainda ironiza Raimundo Girão, insinuando que ele estava iludido, achando que parecia Getúlio Vargas, quando na verdade ele estava “interrompendo o trânsito, atestando o progresso e também atestando um serviço mal orientado”. O calçamento das ruas foi um dos pontos mais polêmicos no projeto de modernização na época. Primeiro, porque só contemplava o centro e as ruas comercialmente mais importantes. Segundo, porque foi um processo arbitrário, verticalizado onde a sociedade estava apartada das decisões, restando apenas, criticar os resultados. Noutra matéria do O Nordeste, percebemos melhor esses contrastes:

Fortaleza apresenta, em matéria de calçamento, o mais chocante dos contrastes. Enquanto a Praça do Ferreira, e algumas ruas ostentam o luxo da pavimentação a concreto ou a paralelepípedo, outras vias, mesmo centrais, se ressentem de qualquer melhoramento nesse sentido, e em várias, o calçamento existente é desolação. Trechos há, por exemplo, na rua “Dona Isabel”, quase intransitáveis, como há na rua “Major Facundo”, “Dona Bárbara”, etc. É uma tortura andar por ali, de veículo ou a pé. De forma que a capital está dando a impressão dessas moças vaidosas que usam vestido de seda e sapatos de solados rôtos. (IDEM, 16/12/1933. P 03).

Esse trecho é muito elucidativo sobre o processo de remodelação das ruas, e da implantação do calçamento a concreto. O calcamento a paralelepípedo estava sendo substituído pelo concreto, pois facilitava o transporte de carros, de pessoas, e era considerado mais moderno e esteticamente superior. Porém, como observamos essas melhorias só contemplavam o centro da capital, e mais especificamente, as ruas mais importantes. As áreas mais distantes como subúrbios, favelas, ou mesmo um bairro um pouco afastado do centro, não era alvo dessas reformas. A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente. A produção de mercadorias é priorizada em detrimento das relações humanas, por conseguinte, os locais de saneamento com equipamentos modernos e condições salutares de moradia, também seguem essa ordem, a “hierarquia da mercadoria”. Não obstante, a própria rua e o calçamento, são também mercadorias, que também se depreciam.

Trechos há, em que dentro de pouco tempo, terá desaparecido por completo o cimento, tal é a precariedade do trabalho [...]. O serviço está mal feito em vários pontos, e a prefeitura deve-se lembrar de que o proprietário, que concorre com sua quota para o calçamento, tem o direito de exigir trabalho eficiente, seguro, para que amanhã, sob pretexto de remodelação no pavimento urbano não venha a recontribuir, onerosamente, para tal serviço. Faz-se preciso, destarte, fiscalização mais rigorosa no calçamento a concreto. (IDEM, 16/11/1933 p 03).

Esta citação expressa que a rua, mesmo sendo uma via pública, já era enxergada como mercadoria, da qual os “proprietários- consumidores” que pagaram os seus impostos teriam o direito de “usufruir” de um produto com qualidade e trabalho eficiente. Há uma inversão de valores, e uma apropriação do público pelo privado, pois não é um cidadão que exige um serviço bem feito mediante a cobrança dos seus impostos, mas um “proprietário”, que não quer onerar o seu bem. Outro elemento importante que podemos constatar, é que já se tinha a noção de que algumas obras eram construídas para terem uma vida curta, a pretexto de reconstruí-las e atrair novos investimentos. Ao que tudo indica as reformas na pavimentação de Fortaleza, não escaparam a esta lógica:

Quem se der a curiosidade de transitar pela travessa Senador Alencar, trecho compreendido entre a rua Major Facundo e Barão do Rio Branco, verificará de que maneira pouco recomendável está a prefeitura gastando os dinheiros do povo. Só nesse pequeno trecho encontram-se uma meia dúzia de remendos recentes, defeituando todo o serviço da pavimentação. Isso vem provar, simplesmente que na composição do concreto entra grande parte de areia e uma insignificância de cimento. O mesmo vem acontecendo com os paralelepípedos. Esse mal acabamento demonstra a sociedade que a prefeitura não fiscaliza os serviços que estão sendo executados a custa do povo e que vão ser pagos por esse mesmo povo. [...] Tudo isso ocorre agora em pleno e rigoroso verão. E quando chegar o inverno? Temos necessariamente de encomendar algumas canoas se desejarmos transitar pela Praça do Ferreira e rua Major Facundo. (A RUA, 29/10/1933 p 09).

A modernização numa cidade capitalista é, em essência, excludente.


O “libelo” acima critica a qualidade da pavimentação, destacando que o material utilizado na construção era adulterado, composto mais de areia do que de cimento. E a culpa seria da prefeitura, que não “fiscalizara as obras”. Diferentemente do relatório apresentado pelo Interventor Federal, Roberto Carneiro de Mendonça, que representou uma imagem edulcorada da remodelação de Fortaleza, alguns periódicos mostraram uma visão diametralmente oposta, esboçando que foi um processo constituído de diversas contradições. E as contradições iam desde o péssimo saneamento dos bairros pobres, até precariedade do serviço de saúde, proliferação da miséria nos areais ao redor da cidade, ausência de local para cuidar dos mendigos, propagação de doenças como: varíola, lepra e alastrim, aumento dos números de delitos, aumento exponencial dos acidentes de trânsito e de trabalho, divorciamento socioespacial do centro–periferia, dentre outros antagonismos provenientes do processo de “modernização” de Fortaleza, ou melhor, das reformas materiais realizadas no perímetro central. Deixando os demais logradouros, expostos á sorte.

Continua...


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Crédito: Artigo 'A produção do espaço urbano de Fortaleza à partir da Seca de 1932' de Rodrigo Cavalcante de Almeida.
Fonte: Relatório do Interventor Federal Roberto Carneiro de Mendonça. Arquivo Público do estado do Ceará./http://memoria.bn.br/

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