Na Beira-Mar, entre luzes que lhe escondem
Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você
Você nem viu a lua cheia que eu guardei
A lua cheia que eu esperei
Você nem viu, você nem viu
Viva o som, velocidade
Forte praia, minha cidade
Só o meu grito nega aos quatro ventos
A verdade que eu não quero ver
Na Beira-Mar, entre luzes que lhe escondem
Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você
E o seu gosto que ficando em minha boca
Vai calando a voz já rouca
Sem mais nada pra dizer
E eu fugindo de você
Outra vez me desculpando
É a vida, é a vida...
Simplesmente, e nada mais
E um gosto de você que foi ficando
E a noite, enfim findando
Igual a todas as demais
E nada mais.
Fachada do bar do Anísio. Acervo Roberto Aurélio
A namorada de Ednardo, à época, costumava reclamar dizendo que ele trabalhava e estudava muito e, por isso, “não comparecia” ao relacionamento. Ele respondeu dizendo que faria uma canção para ela, como pedido de desculpas. O resultado é a romântica “Beira-Mar”, uma declaração de amor que, na realidade, foi uma maneira de se “livrar de uma suja”, como o próprio músico disse em reportagem publicada pelo jornal O Povo no dia 17 de abril de 2005.
Ao lado: Anísio sentado. Marisa abraçando a “Pingo”*, outra frequentadora do bar. Acervo da família
A verdade é que, além de declaração à namorada, “Beira-Mar” é uma homenagem à praia de todos os dias, à vista que se tinha do Bar do Anísio. Como “Beira-Mar”, outras canções eram apresentadas na varanda do Anísio – espécie de primeiro palco dos jovens compositores. Raimundo Fagner, em entrevista ao jornal O Povo, no dia 11 de abril de 2004, revelou que as primeiras músicas que compôs com Belchior começaram ali, no bar. Fagner era um dos mais novos do grupo – três anos a menos do que Belchior – e não frequentava o bar de forma assídua como os outros. “O Fagner não era muito da noite nessa época não. Ele ia às vezes de dia, no fim de semana”, rememora Fausto. Mas, ainda assim, muitas composições de Fagner foram feitas e/ou apresentadas no Anísio. Afinal, ali estavam as grandes promessas da música cearense da época.
As mesas do bar falavam por si. A letra de “Cavalo Ferro” foi feita de uma sentada só, por Ricardo Bezerra e Fagner em uma noite no local. “O violão estava sempre na mão. Já burilávamos poesia e dávamos vazão à arte”, sintetizou Ricardo Bezerra. (Trecho da reportagem publicada no jornal O Povo, no dia 11 de abril de 2004)
Ricardo Bezerra também era estudante de Arquitetura na UFC (como Fausto e Brandão) e compunha músicas em parceira com os colegas de curso, e também com Augusto Pontes, Rodger e, principalmente, Fagner. “Cavalo Ferro” é uma das composições de maior destaque da parceria de Ricardo com Fagner.
Cavalo Ferro, de Fagner
com parceria de Ricardo Bezerra
Montado num cavalo ferro
Vivi campos verdes, me enterro
Em terras trópico-americanas
Trópico-americanas, trópico-americanas
E no meio de tudo, num lugar ainda mudo
Concreto ferro, surdo e cego
Por dentro desse velho, desse velho
Desse velho mundo
Pulsando num segundo letal
No planalto central
Onde se divide, se divide, se divide
O bem e o mal
Vou achar o meu caminho de volta
Pode ser certo, pode ser direto
Caminho certo sem perigo, sem perigo
Sem perigo, sem perigo fatal.
A música é, dentre outras e muitas interpretações possíveis, uma explosão de juventude. Achar-se-á o caminho, certo ou não, direto ou não, e, ainda por cima, sem perigo fatal. O importante é seguir pulsando e montando num cavalo ferro em busca do que ainda não se sabe. Esse era o espírito de Fagner, Ricardo e tantos outros que se permitiam sonhar nas mesas no Anísio.
Outro dos grandes parceiros musicais de Fagner era Belchior. Este, que fora colega de classe de Fausto Nilo e, posteriormente, tentou seguir a vida eclesiástica, mas logo desistiu para voltar à companhia dos amigos boêmios.
Juntos, Fagner e Belchior compuseram canções memoráveis. Dentre elas, a belíssima “Mucuripe”. A música foi tocada pela primeira vez por Belchior no Bar do Anísio, numa noite estrelada. Na letra, observa-se claramente a imagem que se via (e se sentia) das mesas do bar: velas, pescadores, mar, vento e estrelas. Vista que inspirou e embalou a juventude desses e de tantos outros frequentadores do Anísio.
As velas do Mucuripe
Vão sair para pescar
Vão levar as minhas mágoas
Pras águas fundas do mar
Hoje à noite namorar
Sem ter medo da saudade
Sem vontade de casar
Calça nova de riscado
Paletó de linho branco
Que até o mês passado
Lá no campo inda era flor
Sob o meu chapéu quebrado
Um sorriso ingênuo e franco
De um rapaz moço encantado
Com vinte anos de amor
Aquela estrela é bela
Vida vento vela leva-me daqui
Aquela estrela é bela
Vida vento vela leva-me daqui.
No trecho “Vida, vento, vela leva-me daqui” evidencia-se a vontade latente de se ir embora (como em “Carneiro”, de Ednardo), de buscar e encontrar novas perspectivas em outros ares, mais ao sul. Quem sabe lá, distante do provincianismo alencarino, fosse possível afundar as mágoas e sorrir, mesmo que ingenuamente.
Entre uma música e outra, as noitadas na Beira-Mar eram, muitas vezes, interrompidas por uma tradição da época, também musical: as serenatas. Nos anos 1960 e 1970, os prédios ainda não eram maioria na cidade, sendo possível cantar para as namoradas ou mesmo surpreender uma paquera e conquistar corações no meio da madrugada.
Grande parte dos frequentadores do Anísio eram músicos, futuros músicos ou aspirantes a cantores. Ou seja, todo mundo participava das tais serenatas, nem que fosse apenas para apoiar um amigo apaixonado. Patrícia*, amiga de Annuzia e de Maria Zélia, era lésbica. Se a homossexualidade ainda é vista, nos dias de hoje, com bastante preconceito, pode-se imaginar como era nos anos 1970. Muitos homossexuais tinham medo de se assumir em determinados ambientes, principalmente aqueles mais conservadores que se apresentavam hostis.
Ataliba em pé de óculos. Um dos inimigos do ritmo sentado, com o violão. Acervo da família.
Ao lado: Da esquerda para a direita: Maria Zélia, Airam, Annuzia, Mineiro* sentado e os Inimigos do Ritmo. Não se sabe quem são os outros homens. Acervo Maria Zélia.Mas no Anísio não havia essa atmosfera de repressão. Pelo contrário, ali cada um podia ser e agir como bem entendesse. Patrícia, nos primeiros dias de frequentadora do bar, ainda não se “assumia”. Foi dizer-se lésbica depois, talvez ao perceber que ali, sim, estava segura.
Mudou inclusive a maneira de se vestir, ficando mais à vontade para usar as blusas do pijama, como gostava de fazer.
Certa vez, ela levou Annuzia e Maria Zélia para ajudarem-na a fazer uma serenata para a namorada à época. Para acompanhá-las no violão, as meninas chamaram os Inimigos do Ritmo. As três passaram no Anísio e “botaram” os irmãos dentro do carro para irem todos juntos à serenata.
A gente comprou um violão pra eles. Era muito legal. A gente ia fazer serenata na puta que pariu e eles iam com a gente. Tudo eles faziam pra gente. (Maria Zélia)
Já no caso dos rapazes era mais fácil, pois a maioria já sabia tocar algum instrumento. Não era preciso “laçar” violeiros para compor a banda. Eles próprios se reuniam e formavam uma espécie de conjunto musical. A serenata tornava-se uma espécie de show particular.
Flávio se lembra de que, nessa época, Rodger tocava contrabaixo na banda do padrasto. Assim, os amigos se relacionavam com todos os músicos do grupo. As serenatas que faziam, portanto, eram de “primeira grandeza”. “Era o melhor pianista da cidade tocando escaleta
(instrumento de sopro e teclas). Serenata de alto estilo, menina! De qualidade”, conta Flávio.
Esquerda para direita: Elizete*, Marisa com o copo na mão, abraçando Anísio (sentado) e “Pingo”. Acervo da família.
Na lembrança de Rodger, porém, as serenatas eram feitas apenas com voz e violão. “Eu fazia muitas. Aliás, eu comecei a me soltar mais fazendo serenata”, lembra-se, divertido. Poucos rapazes tinham carro próprio. Por isso, na maioria das vezes, Flávio era o motorista.
Primeiro, no fusquinha. Depois, ganhou do pai uma Kombi que logo se transformou no transporte oficial dos amigos.
À esquerda, Isabel Lustosa de cabeça baixa. Ao lado de Isabel, a jornalista Ângela Borges. Na cabeceira, Cláudio Pereira. Todos no Anísio. Acervo Roberto Aurélio.
Cabia uma turma enorme, né? (risos) Então a gente comprava um balde, isopor de gelo, tirava aquele banco do meio e a Kombi era um bar. Era cheio de rum, coca-cola, gelo. E cabia todo mundo! Aí eu era o transportador oficial da turma. (Flávio)
Guto Benevides também adorava fazer serenatas. Desenrolado e sociável, o jovem chamava cantores de outros estados, que vinham a Fortaleza se apresentar, para o acompanharem nas tais serenatas. Na época, Guto já trabalhava no jornal O Estado e tinha uma coluna intitulada “Curtição do Guto”. Assim, estava sempre em contato com os artistas que passavam pela cidade.
Cauby Peixoto, Altemar Dutra. A gente convidava eles [sic] para beber. Depois, parava o carro na casa da namorada e pedia pra eles cantarem uma música. Elas abriam a janela ou davam sinal: acendiam a luz e apagavam. Aí todo mundo ficava feliz no outro dia. (Guto)
Casa do Pereira no início dos anos 1970. Acervo Roberto Aurélio.
Guto começou a frequentar o Bar do Anísio no início dos anos 1970. Acabara de ganhar um prêmio publicitário, por uma campanha que fez, e queria comemorá-lo. Foi, então, ao Anísio – que nessa época já era bastante conhecido – e disse: “Eu quero saber se tem alguém aqui pra beber até de manhã”. O alguém que levantou o dedo e disse “eu” era Cláudio Pereira. Iniciou-se, assim, uma grande amizade entre os dois, que passaram a virar noites no bar e a compartilhar brincadeiras etílicas e conversas, por vezes, sóbrias.
*Nomes fictícios
Crédito: Livro Bar do Anísio - Casa de Liberdades de Isabela Bosi - 2012